O reggae não é só Bob Marley, mas Marley continua a ser o grande embaixador da música jamaicana e já passaram 40 anos sobre a sua morte, ocorrida a 11 de maio de 1981. Seis meses antes, em dezembro de 1980, tinha sido assassinado John Lennon. Não havendo grandes afinidades estéticas entre ambos, e sendo raramente equiparados, a verdade é que Lennon e Marley tinham posturas político ideológicas semelhantes e usavam a música para veicular mensagens de paz e união, ainda que, no caso de Marley existisse uma componente de rebelião particularmente vincada, essencial para a afirmação do povo jamaicano. Foi por isso, pela mensagem política de libertação e união, que Bob Marley se tornou um ídolo, primeiro na Jamaica, depois no mundo. Terá sido também por isso, e pelo diálogo entre guitarra e baixo, que John Lennon usou “Get Up Stand Up” como referência nas gravações de Double Fantasy, o seu derradeiro disco (o registo está em sobras das sessões de gravação).

Bob Nesta Marley não nasceu herói. Foi-se fazendo à medida que a música jamaicana ganhava identidade e força. Filho de um jamaicano branco de origem britânica e de uma mulher afro-jamaicana, Marley nasceu em Nine Mile, no norte da Jamaica e cresceu no bairro mais pobre de Kingston, Trenchtwon, um verdadeiro epicentro musical que acolheu alguns dos grandes pioneiros do ska, reggae e rocksteady. Primeiro começou por fazer parte de um grupo vocal, com Bunny Wailer (um irmão de Bob Marley, era filho do segundo companheiro da mãe), Peter Tosh e outros futuros Wailers, mas acabou por aprender a tocar guitarra e ganhou outras capacidades.

[“Get Up, Stand Up” ao vivo em 1980:]

O primeiro single, gravado em 1962, saiu sem grande alarido sob o nome Bobby Martell, pouco depois fundava os Teenagers, que depois foram Wailing Rudeboys e também Wailing Wailers, antes de se estabelecerem como The Wailers, por sugestão do produtor Coxsone Dodd, patrão do Studio One, um dos estúdios de gravação mais importantes da época em Kingston. O primeiro single dos Wailers foi um êxito, mas a relação com o produtor Coxsone Dodd deteriorou-se e os Wailers acabaram por escolher trabalhar com Lee Scratch Perry, um dos magos pioneiros do dub jamaicano. Soul Rebels (1970) e Soul Revolution (1971), são os dois discos resultantes da frutuosa colaboração.

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Por esta altura, Bob Marley já tinha abraçado a religião rastafari, cujas origens remontam ao séc XVII, quando um grupo de escravos na Jamaica escapou das plantações e criou comunidades isoladas na montanha. Os Rastafaris acreditam que a Etiópia é a Terra prometida e que os negros são a tribo perdida de Israel, os hebreus negros que esperam a repatrição. Nos anos 20 do século passado, Marcus Garvey, pensador, escritor e ativista jamaicano, estabeleceu-se como o grande herói rastafari, proclamando o regresso do povo oprimido da Jamaica às suas origens africanas e anunciando a coroação de um grande rei em África como a segunda vinda de Jesus. A afirmação foi considerada profética porque em 1930 Haile Selassie, nascido Ras Tafari, foi coroado imperador da Etiópia. A crença na sua natureza divina era tal que em 1966 Haile Selassie visitou a Jamaica e mais de 100 mil pessoas foram vê-lo.

[“Lively Up Yourself”:]

Não há dúvida que o rastafarianismo ajudou a criar um identidade cultural para a população jamaicana, maioritariamente composta por descendentes de escravos levados de África, e que o reggae foi um dos seus grandes veículos de disseminação. Bob Marley não só aderiu, deixando crescer o cabelo em longos dreadlocks e fumando muita marijuana, como mandam os preceitos religiosos, como ajudou a espalhar a palavra de Jah (Deus em rastafari), que pregava união, paz e igualdade. No final dos anos 60, e daí em diante, Bob Marley, tornou-se no grande porta voz do Pan-africanismo, apelando à justiça social e ao fim da pobreza e da opressão, falando das prisões passadas e do sonho da unidade futura. A mensagem era particularmente forte para a população jamaicana, pobre, inquieta e à beira da guerra civil. Mais de metade eram analfabetos, a música era a melhor maneira de fazer chegar a  informação e começar a mudança.

Apesar de inicialmente ser visto como uma novidade exótica, um poster boy do reggae com alto perfil de sex symbol, a mensagem de Marley acabou por fazer eco também num público internacional que, podia não sentir as mesmas dores do povo jamaicano, mas tinha as suas próprias lutas. Depois de uma digressão dos Wailers no Reino Unido, em 1972, com Johnny Nash, as portas do ocidente abrem-se finalmente pela mão de Chris Blackwell, da Island Records, que procurava um nome jamaicano capaz de substituir Jimmy Cliff junto de um público mais ligado ao rock. Marley era perfeito para o lugar que Blackwell tinha vazio e os Wailers galgaram rapidamente as fronteiras da Jamaica.

[“Burnin’ and Lootin”:]

Catch a Fire e Burnin, ambos de 1973, foram os discos da conquista e a prova da eficácia do resultado surgiu com a versão de Eric Clapton para “I Shot The Sheriff”, em 1974. Foi um dos primeiros sinais de que os músicos de rock estavam de olhos postos na música jamaicana, um fenómeno de contágio que se verificou também em bandas como os Rolling Stones (álbum Black and Blue de 1976), mas sobretudo na geração punk através de bandas como os Clash, Slits ou Specials. Na verdade, “Burnin and Lootin”, também de Burnin, tal como “Get Up Stand Up” e “I Shot The Sheriff” (e “Small Axe”, que inspirou o título da excelente série de Steve McQueen sobre os emigrantes das caraíbas no Reino Unido), tornou-se num hino de contestação, para os punks, cheios de vontade de se amotinar contra o sistema, mas também para os que não sendo punks, estavam insatisfeitos.

Os Wailers originais separam-se em 1974, depois do que prometia ser uma gloriosa digressão americana com Sly And The Family Stone, da qual alegadamente foram despedidos por provocarem mais entusiasmo no público do que os cabeças de cartaz. Marley seguiu carreira como Bob Marley and the Wailers, lançando discos como Exodus e Kaya, que ajudaram a solidificar o seu estatuto tanto como músico, como enquanto ativista político. Em meados dos anos 70, a sua influência era notória e nem sempre bem recebida, dentro ou fora da Jamaica. Em 1976, foi vitima de uma tentativa de assassinato (chegou a dizer-se que por parte da CIA, mas não existem provas disso) antes de um concerto em Kingston, promovido pelo então primeiro ministro Michael Manley, mas nem os ferimentos o demoveram de continuar a sua luta por um futuro de unidade e em 1978 insistiu e conseguiu reunir em palco, para um aperto de mão, Michael Manley e o líder da oposição, Edward Seaga.

[“Keep on Moving”:]

Survival e Uprising, os dois últimos álbuns lançados em vida (Confrontation foi editado postumamente), carregam de forma evidente na carga política e espiritual e mostram um músico e ativista consciente do poder da sua mensagem. Ambos foram feitos depois de lhe ter sido diagnosticado um melanoma maligno no dedo do pé, doença que alguma mitologia popular atribui a uma pontapé mal dado durante um jogo de futebol, outra a uns ténis novos (enviados como engodo pela CIA) com um misterioso arame metálico que teria perfurado a unha.

A doença, então pouco conhecida, não terá surgido de nenhuma lesão, sabe-se hoje. Marley foi aconselhado a amputar o dedo, mas recusou-se e continuou a tocar e gravar, enquanto o cancro alastrava pelo cérebro, pulmões e fígado. Morreu com 36 anos, em maio de 1981. Deixou um legado enorme e inspirador em forma de música e pensamento que se estende pelos quatro cantos do mundo. As suas palavras e aspirações de união, amor e paz continuam totalmente pertinentes 40 anos depois, porque ainda não foram cumpridas.