Existem, como todos sabemos, poucas certezas na vida. Mas não será um grande risco assumir que o desabafo “sinto que falhei” surgirá acompanhado de um falhanço. Exceto no caso da humorista Mariana Cabral, mais conhecida como Bumba na Fofinha, que, depois de concluir o primeiro episódio do seu novo programa de entrevistas com a afirmação “Estamos disponíveis para falhar, e eu sinto que falhei um bocado nesta condução”, entrou direta para o primeiro lugar dos podcasts mais ouvidos em Portugal no Spotify. Talvez esta seja uma boa altura para acrescentar que o tema deste sucesso retumbante é o fracasso.
“Durante os próximos domingos às 19h vou conversar com algumas das pessoas que mais admiro só sobre os seus fails, arrependimentos, projetos que deram cocó, tiros ao lado, fases más e inevitáveis tropeções no caminho sinuoso para se ser realmente bom (como eles são, todos)”, explicava a 2 de maio, quando lançou o programa com um post no Instagram. Para concluir, “depois da autêntica sova que foram estes 2 anos e da overdose de positividade tóxica aqui no feed – ‘vai-ficar-tudo-bem’ – acho que estamos todos a precisar de fazer RESET ao embuste da perfeição e da invencibilidade, e eu só conheço uma boa forma: rindo da desgraça.”
Em pouco mais de uma semana, a estreia de “Reset”, com o também humorista Ricardo Araújo Pereira, teve mais de 400 mil visualizações no YouTube. Não são públicas as audiências do Spotify, mas ao todo os números devem ultrapassar o meio milhão. O feito é inédito para um podcast português. Já agora, e só para consolidar o argumento: na sua estreia, o programa de Bruno Nogueira na SIC, “Princípio, Meio e Fim”, atraiu 496 mil pessoas (muitas mais terão assistido em diferido). Quanto a “Alta Definição”, de Daniel Oliveira, já um clássico, teve no início deste mês os piores resultados de 2021, mas ainda assim perto de 630 mil espectadores.
[o primeiro episódio de “Reset”, com Ricardo Araújo Pereira:]
O sucesso é uma coisa misteriosa. Por mais fórmulas que se tente definir, parece que há sempre qualquer coisa que nos ilude. Até podemos falar no íman que é Ricardo Araújo Pereira, no número de seguidores da própria Mariana (465 mil no Instagram) ou da cantora Carolina Deslandes (869 mil), protagonista do segundo episódio, estreado há poucos dias e já com 150 mil visualizações no YouTube. Mas quantas entrevistas não terão cada uma destas pessoas já dado sem estes resultados? Este nem é o primeiro podcast da Bumba na Fofinha. “Fuso”, uma ruminação semanal promovida a programa áudio, já vai em mais de 60 episódios – e nem por isso com este sucesso. Até o formato de conversa é tão comum que o mais recente podcast do maestro Martim Sousa Tavares e do cartoonista (e não só) Hugo van Der Ding para a Antena 3 se chama “Duas Pessoas a Conversar”. Nem por isso terá meio milhão de ouvintes numa semana.
Com apenas dois programas emitidos, o que parece destacar-se é a inteligência. A vários níveis. Para começar, em termos de carreira. Mariana Cabral, que já tinha conseguido tornar-se uma das maiores referências do humor português quase só com vídeos em nome próprio partilhados nas redes sociais, consegue subir mais um patamar sem ter de abdicar da autonomia ou da independência. Depois, no ângulo. Se no início do milénio o que mexia com as pessoas eram as histórias de sucesso e com a crise financeira vieram as narrativas de superação, agora queremos chafurdar no falhanço puro. Mesmo que – ou até porque – aquelas pessoas são tudo menos falhadas. Ainda, na escolha dos convidados: apostas seguras e para ganhar. Por fim, no tom. O grande trunfo. De forma sintética, empatia.
Quando Mariana diz que sente que falhou na condução da entrevista com Ricardo Araújo Pereira, está correta – mas só em parte. Sim, não controlou. A dada altura perde-se. Admite-o. Usa a begala do falhanço: aqui é permitido. No fim fica muito por perguntar mas, das dezenas de entrevistas que ele já deu, esta é uma daquelas em que parece mais genuíno. Menos tenso. Em que sentimos que vimos qualquer coisa que não conhecíamos, especialmente no final, quando o tema é kickboxing e há ali um vislumbre da pessoa que, apesar de tudo, viverá dentro daquele fato de humorista. E é uma pessoa comum.
[o segundo episódio, com Carolina Deslandes:]
Um dos aspetos mais sedutores do podcast é a indefinição. No limite, pode ser qualquer coisa. Falta de meios (leia-se, “dinheiro”) leva a que na cena portuguesa dominem as conversas. Duas pessoas, um microfone. Mas mesmo esse terreno é vastíssimo. Desde as regras da entrevista jornalística, que tanto pode ser mais profunda ou inquisitória, mas tem um espartilho apertado, ao pântano pastoso em que se afundam a autoindulgência e a mandriice. A “Bumba” – ou Bumbz – consegue estar ali a meio, num registo de conversa íntima entre amigos mas com horas de estudo por trás. Há por vezes um tom revisteiro que incomoda mais do que diverte. Uma dicção apressada que não se percebe se é defeito se é feitio. Os elogios frequentes, que fazem um bocadinho de urticária. Mas acima de tudo perguntas honestas, compreensivas e reveladoras.
Na coletânea “Silence”, o compositor John Cage – o mesmo dos “4’33’” – conta uma história que se tornou célebre. Estaria o amigo e pianista David Tudor a almoçar na cantina de uma faculdade experimental da Carolina do Norte, a Black Mountain College, quando um estudante o aborda e desata a fazer perguntas. Impaciente, Tudor ter-lhe-á respondido: “Se não sabe porque é que pergunta?” Na década de 1980, em Portugal, a questão serviu de título para um livro de conversas do psiquiatra João dos Santos com crianças. Já Mariana faz aquelas perguntas porque sabe onde a vão levar. Há ali questões – e ela assume-o – que são suas. O formato pode ser o da entrevista, mas o tema é a autoanálise. Moeda de troca: vulnerabilidade. Eu mostro-te a minha, tu mostras-me a tua. Afinal, somos todos iguais. Mesmo que a orbitar zonas diferentes muito diferentes da atmosfera; eles na sua estratosfera, nós por aqui.
Será interessante ver o que aí vem. O tipo de convidados, a evolução no próprio formato e da capacidade de Mariana Cabral como entrevistadora. É normal que os números desçam – a novidade esgota-se – mas é possível que o melhor ainda esteja para vir, assim a persistência o permita. Também será fácil descambar. Para já, tem pelo menos esta medalhinha, o momento em que, numa entrevista intensa e de enorme generosidade, a cantora Deslandes reconhece ter um distúrbio alimentar e afirma, “Acho que é a primeira vez que digo isto. Se há sítio para falar disto é aqui.”
Título: “Reset”
De: Mariana Cabral, aka Bumba na Fofinha
Disponível: Spotify, YouTube
Para quem: Fãs da Bumba e de longas conversas que vão da escatologia à autoanálise