Há 215 pares de sapatos de crianças nas escadarias da Galeria de Arte de Vancouver. Cada um deles representa um dos 215 corpos desenterrados, na passada semana, no terreno de uma antiga escola residencial do Canadá. O memorial foi pensado pela artista Tamara Bell: “Queria criar algo visual para que toda a gente conseguisse ver o que são 215 crianças.” Os corpos, alguns de crianças com apenas três anos de idade, foram descobertos com a ajuda de um radar de penetração no solo. A suspeita existia, agora houve a confirmação. Terão morrido enquanto frequentavam a escola Kamloops, encerrada em 1978, e são uma lembrança de “um período negro” da história do país, escreveu Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, no Twitter.
A partir de 1863 foi criado no Canadá um sistema escolar residencial indígena, escolas administrados por igrejas cristãs e para onde eram enviadas crianças, de forma a afastá-las da sua cultura. Os menores eram retirados à força às suas famílias, estimando-se que 150 mil crianças tenham passado pelo sistema. Muitas não voltaram às suas comunidades ou porque fugiram ou porque morreram nas escolas.
A mais recente investigação sobre escolas residenciais, da Comissão de Verdade e Reconciliação, aponta para a morte de pelo menos 4.100 crianças dentro da rede — e que ficaram conhecidas como as Crianças Perdidas. Os 215 corpos agora encontrados não faziam parte das mortes documentadas. Rosanne Casimir, líder da Primeira Nação Tk’emlups te Secwépemc, acredita que ainda serão encontrados mais cadáveres na zona onde se erigia a maior escola residencial do Canadá, na Colúmbia Britânica, extremo oeste do país.
O relatório da Comissão de Verdade e Reconciliação, que revelou os maus-tratos que os menores sofriam, mostra que 3.200 crianças morreram devido a abusos e a negligência, apontando para um total de 51 vítimas mortais na escola de Kamloops, entre 1915 e 1963. O número, percebe-se agora, estava subdimensionado. Acrescenta-se ainda que nestas escolas, em tempos de epidemias, a taxa de mortalidade de crianças era sempre muito elevada.
“É com o coração pesado que se confirma uma perda impensável que foi falada, mas nunca documentada na Escola Residencial Indígena Kamloops”, lê-se no comunicado de Rosanne Casimir. “A verdade nua e crua das descobertas preliminares veio à tona — a confirmação dos restos mortais de 215 crianças que eram alunos da Escola Residencial Indígena Kamloops.” Apesar disso, Casimir diz que a comunidade tem “mais perguntas do que respostas” sobre o que aconteceu com estas crianças.
Na sexta-feira, quando o comunicado de Rosanne Casimir expôs a situação, o primeiro-ministro canadiano reagiu no Twitter.
“As notícias de que foram encontrados restos mortais na antiga escola residencial Kamloops, partem-me o coração — é uma dolorosa lembrança de um capítulo negro e vergonhoso da história do nosso país”, escreveu Justin Trudeau.
The news that remains were found at the former Kamloops residential school breaks my heart – it is a painful reminder of that dark and shameful chapter of our country’s history. I am thinking about everyone affected by this distressing news. We are here for you. https://t.co/ZUfDRyAfET
— Justin Trudeau (@JustinTrudeau) May 28, 2021
Em 2008, o então primeiro-ministro, Stephen Harper, apresentou um pedido de desculpas público pela existência das escolas residenciais. Pouco dias depois, foi criada a Comissão de Verdade e Reconciliação para desvendar o que realmente acontecia nas escolas. Em 2015, depois de reunir mais de 7 mil depoimentos de antigos alunos, publicou o relatório que expõe testemunhos chocantes e considera que o sistema escolar equivalia a um genocídio cultural.
Foi essa expressão que Terry Teegee, chefe regional da Assembleia das Primeiras Nações da Colúmbia Britânica, usou para comentar a descoberta macabra: “Isto faz ressuscitar a questão das escolas residenciais e as feridas desse legado de genocídio contra os povos indígenas.”
Um sobrevivente do sistema, Alex Watts, diz que a procura por mais restos mortais não pode parar. “Sempre soube que havia restos mortais no terreno da escola residencial”, confessou Watts, que aos 8 anos foi retirado à sua família, mostrando-se surpreendido apenas com o tempo que se demorou a fazer a descoberta. As histórias que ouviu de crianças a cavar sepulturas de outras crianças nunca as esqueceu. “Deviam verificar os terrenos de outras escolas para procurar possíveis vestígios no terreno. Essas almas perdidas precisam de ser trazidas para casa, precisam de regressar às suas terras.”