Quando, em 1929, a escritora inglesa Virginia Woolf afirmou que uma mulher, para poder escrever, precisa “de um quarto que seja seu”, aludia não só à necessidade de as mulheres terem um lugar na casa onde pudessem ter a sua intimidade, o seu espaço de leitura, reflexão, tédio, como também um espaço onde pudessem criar algo seu. Algo saído do seu mundo, do seu olhar, das suas mãos, da sua voz. Se ter um quarto para si mesmas foi (ainda é) uma conquista a fazer por tantas mulheres no mundo, ter um atelier, um espaço para expor, e alguém disposto a receber o seu trabalho, talvez seja uma luta ainda mais difícil. Por isso, praticamente só a partir do início do século XX as mulheres começaram a afirmar-se no campo das artes plásticas.
Em Portugal, com as condições ainda mais dificultadas pela pobreza, o analfabetismo, a ditadura, a rigidez de um moralismo fundados na religião judaico-cristã e em todos os anátemas que ela atirou sobre a mulher, as artistas tiveram (têm) um longo combate para se conseguirem afirmar artística e socialmente. Um combate que é sobretudo político, mas também é individual, íntimo, onde se jogam as questões de género, da sexualidade, da igualdade, da história, da memória.
Daí que Helena de Freitas, curadora da exposição Tudo O Que Eu Quero, que abre ao publico na próxima quarta-feira, dia 2 de junho, na Fundação Gulbenkian, não hesite em afirmar: “Esta é uma mostra feminista, no sentido em que ela visa reparar a história e dar às mulheres artistas um espaço de diálogo, de afirmação que é mais do que ideológico e identitário, embora também o seja, mas que é sobretudo mostrar a relevância histórica e artística das mulheres portuguesas”. Vieira da Silva, Paula Rêgo, Lourdes Castro, Helena Almeida, Ana Vieira ou Joana Vasconcelos voltam agora a Lisboa para nos relembrar que, em Portugal, os artistas que maior consagração internacional tiveram são todos mulheres.
“Só quero uma coisa: espaço e nada mais”, dirá, precedendo Virginia Woolf, a psicanalista e intelectual russo-germânica, Lou-Andreas Salomé. A allumeuse, que apaixonou alguns dos génios do seu tempo, como Nietzsche, Rilke ou Freud, é de novo convocada como musa e “anjo terrivel” desta exposição, que retoma esta sua frase e a transforma em título e manifesto. Lou encarna, ainda no século XIX, a mulher simultaneamente inteligente e sedutora, que serve de inspiração, que é objeto de desejo mas que é, sobretudo, sujeito da sua vida e da sua obra.
Ela lê Freud de um ponto de vista único, com admiração mas sem qualquer subserviência, escreve-lhe uma longa carta e ele, não obstante todas as suas conhecidas reservas contra o sexo feminino, convida-a para ir estudar com ele em Viena d’Austria e aceita-a como discípula, apesar de ela se ter mantido como indisciplinadora e pensadora livre da Psicanálise. Aurélia de Sousa, a artista de olhos bem abertos, que nos guiará, com várias obras, ao longo desta exibição, nasce como Lou-Andreas Salomé, na década de 60 do século XIX, e será uma das primeiras artistas a conseguir um lugar de destaque no panorama das artes plásticas em Portugal. Os seus autorretratos, o seu olhar interpelante e assertivo foram determinantes para o projeto curatorial de Helena de Freitas e Bruno Marchant, escolhidos pela ministra da Cultura Graça de Freitas, para materializarem este evento que integra o programa cultural da Presidência Portuguesa da União Europeia.
A mostra estava programada para se apresentar a 23 de Fevereiro no Palácio das Belas Artes de Bruxelas, mas um incêndio numa das alas que acolheria uma parte das peças alterou os planos. Assim Tudo O Que Eu Quero inaugura dia 2 de junho, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, onde fica até 23 de agosto, seguindo depois para a a cidade francesa de Tours, no âmbito da Temporada Cruzada Portugal-França. São ao todo 200 obras de mulheres nascidas entre a década de 60 do século XIX e a década de 80 do século XX, atravessam vários movimentos artísticos, várias línguagens e disciplinas.
Entre as muito conhecidas como Paula Rêgo e as quase desconhecidas como Maria Antónia Siza quer-se pôr em diálogo diferentes experiências artísticas, mundividências, matérias, questões que em comum têm apenas a vontade destas mulheres de se afirmarem como sujeito da arte e não apenas como objeto, lugar que ocuparam durante milénios. Aqui e agora elas representam. Não são representadas. Estão dentro das obras não como modelo mas como criadoras.
“Se queres uma vida, rouba-a”
De novo a sugestão de insubmissão vem-nos de Lou-Andreas Salomé: “O mundo não te vai oferecer nada, acredita. Se queres uma vida rouba-a”. Numa atualidade marcada pelas lutas em prol da igualdade de género, esta exposição não quer ser “um retrato do que é feminino e do que é português”, afirmam os curadores. Também não quer ser um “evento de salão”, por isso, de entre tantas artistas portuguesas cheias de potencial e de indubitável criatividade, escolheram apenas 40 para que se pudesse conhecer com mais atenção “distintas naturezas artísticas, formais e discursivas” e para que, dentro de uma grande diversidade temática se possa mostrar obras que “contribuíram para os debates estético-artísticos que se sucederam ao longo do século XX, quer para discutir questões emergentes da contemporaneidade, como sejam os direitos cívicos, a noção de crise, de ecologia, de identidade ou pós-colonialismo”, explicam os curadores no texto que abre o catálogo da exposição.
Assim, ao longo de quinze núcleos diferentes podemos ver obras de seis artistas que se afirmaram na primeira metade do século XX, como Aurélia de Sousa, Sarah Affonso, Vieira da Silva, Maria Lamas, Mily Possoz e Ofélia Marques e outras trinta e quatro que se afirmaram na segunda metade, em especial depois do 25 de abril de 1974. Da “melancolia intransmissivel” de Menez, passando pela forma indómita como Paula Rego questiona o masculino, o experimentalismo poético de Lourdes Castro, os objetos de prazer de Patrícia Garrido, a poesia concreta de Ana Hatherly e Salette Tavares, o mundo pagão de Rosa Ramalho, os múltiplos vazios e perdas de Ana Vieira, a intimidade do corpo omnipresente de Helena Almeida ou o olhar-testemunho de Maria Lamas nas fotografias que integram o livro As Mulheres do Meu País, feito nos anos 40.
O auto-retrato e as várias formas de auto-representação (não necessariamente auto-biográfica ou confessional) têm nesta exibição uma força estrutural, que invoca novas formas de olhar, de perceção, de temas que as mulheres trouxeram para a arte. Uma das interrogações que os curadores querem deixar no ar é: “Depois de tantos séculos a ser apenas alvo do olhar do homem, que imagem é que as mulheres querem projetar de si?”.
Artistas representadas nesta mostra: Aurélia de Souza, Mily Possoz, Rosa Ramalho, Maria Lamas, Sarah Affonso, Ofélia Marques, Maria Helena Vieira da Silva, Maria Keil, Salette Tavares, Menez, Ana Hatherly, Lourdes Castro, Helena Almeida, Paula Rego, Maria Antónia Siza, Ana Vieira, Maria José Oliveira, Clara Menéres, Graça Morais, Maria José Aguiar, Luísa Cunha, Rosa Carvalho, Ana Léon, Ângela Ferreira, Joana Rosa, Ana Vidigal, Armanda Duarte, Fernanda Fragateiro, Patrícia Garrido, Gabriela Albergaria, Susanne Themlitz, Grada Kilomba, Maria Capelo, Patrícia Almeida, Joana Vasconcelos, Carla Filipe, Filipa César, Inês Botelho, Isabel Carvalho, Sónia Almeida.
A exposição está aberta ao público a partir de dia 2 de Junho até 23 de Agosto. Todos os dias, das 10h às 18h, exceto terças-feiras. A entrada é gratuita, mas será necessário tirar bilhete para controle do número de pessoas dentro do espaço expositivo.