Aqui, todos usam pantufas. E há um documento que explica uma tradição da casa: colocar raspadinhas dentro de livros. Isto quer dizer que a fortuna pode estar na próxima página. E como dava jeito, por estes dias, aos habitantes da YOLO Living — nome que a filha do dono, Yolanda, decidiu dar ao apartamento no centro da cidade, onde vive com mais dois amigos —, um dinheirito que fosse capaz de convencer o pai a não vender o prédio ou que servisse de caução para um novo arrendamento.
YOLO, que vai estar de 3 a 6 de junho no CAL — Primeiros Sintomas (integrado no Momento I do festival Temps d’Images), é a primeira criação de Sara Inês Gigante que, depois de ter estagiado no Teatro Nacional D. Maria II, onde participou em vários espectáculos de vários criadores, fez assistência de encenação a Tiago Guedes em A matança ritual de Gorges Mastromas, processo que se revelou decisivo para projetar o primeiro ímpeto, o desejo de autoria, o agora-sou-eu-quem-fala. Na sinopse do espectáculo, Sara fala de um telefonema com a mãe onde desabafava sobre outras vontades, sair do urbanismo tóxico lisboeta, o idealismo de quem procura viver de forma diferente, uma cabana no campo, um terreno para construir.
“A minha mãe é uma pessoa bastante peculiar e que foge um bocadinho à convenção das mães. Tem um certo espírito aventureiro. Sou de Viana de Castelo e a minha mãe tem uma cabaninha num terreno que era da minha avó, portanto está bastante inteirada sobre formas alternativas de obter espaço próprio. Acaba por ser uma fonte de informação nesse sentido. E, de facto, enquanto projeto pessoal, tenho as minhas convicções e um dia que tenha uma casa própria será nesses moldes, não será uma casa convencional, tanto por questões ecológicas como por questões financeiras”, admite.
Mas isso não quer dizer que esteja aqui o gatilho do espectáculo: “A ideia primordial talvez seja a dificuldade que sinto em concretizar certas coisas; ou as coisas que reconheço que estão a ser muito complicadas para mim e para as pessoas da minha idade, essa construção de um futuro onde a casa própria é só um dos mil problemas. A casa acaba por ser o pretexto para falar sobre outros desafios, nomeadamente conflitos geracionais que se tornam cada vez mais evidentes, a falta de representação juvenil… É normal pensar sobre quando é que vai ser possível ter uma casa, ter filhos. No fundo, quis tocar numa série de questões que tenho sentido à minha volta”, esclarece.
É por isso que na YOLO Living — casa onde podemos encontrar as quatro letras que dão nome à casa e à protagonista em modo alcunha — há um L onde cabem livros, uma cadeira onde os amigos fazem de filhos e de pais e de chefes e de namorados e de amigos. Sim, Yolo fala com o pai através de Zacarias. David fala com a namorada através de Yolo. Zacarias fala com o chefe através de Yolo. Algures entre a dinâmica de amizade juvenil ao estilo eu-sei-o-que-estás-a-sentir e o fingir que somos outros, com direito a sotaque, conservadorismo, está o conflito geracional profundamente evidente quando Zacarias faz de pai de Yolo. Até parece fazer bem, mas também aí, até para que as leituras se acumulem e as hipóteses se expandam, há espaço para frases como: “O meu pai não é tão eloquente…” Ou seja, correções das personagens originais face às figuras que imitam.
“A ideia foi a de tentar que o espectáculo e as personagens não fossem de uma só cor, era muito importante que o espectáculo não representasse uma ode do contra, queria fugir a isso, a intenção sempre foi levantar a poeira, falar sobre alguns problemas. Eventualmente, se tudo correr bem, as pessoas poderão refletir, mas não necessariamente manter uma posição muito concreta ou pelo menos não evidenciá-la através do espectáculo. Esta dinâmica de role-play surgiu porque os três atores são jovens. A coisa acaba por ser bastante juvenil, mas como é que trazíamos a voz de outras pessoas, de pessoas mais velhas, pessoas que têm cargos profissionais muito altos, uma namorada que não está presente? O facto de isso acontecer em role-play traz uma metáfora. É um código teatral, é um código dramatúrgico”, explica a criadora.
Para que todos estejamos no mesmo sítio: Yolo aka Yolanda é uma influencer que ganha a vida através de pequenos vídeos nas redes sociais — mini-objetos que cria com pastilhas elásticas por exemplo —; David é um músico sonhador, daqueles que todos reconhecem que tem talento, mas que continua a ter de sobreviver com biscates de várias espécies e jingles para anúncios publicitários; Zacarias é um jornalista em início de carreira, num estágio não-remunerado, com chefes condescendentes e sonhos desenquadrados. Estamos situados? Está muito presente a ideia da precariedade, da vivência jovem-adulta, do precisamos de ideias para resolver isto, temos três meses para sair daqui e agora? Deviam ter investido na bitcoin na altura certa. Talvez possam vender produtos anti-aging ou champôs sólidos e naturais. Talvez. Ou então podem continuar a fazer-se passar por outras pessoas, a imitar a sua forma de falar, afinal é sobretudo isso que vamos fazendo durante a vida: fingir que estamos bem e que sabemos sempre o que se passa com os outros.
“E estamos sempre a ser psicólogos dos nossos amigos e até de nós, assumimos sempre que sabemos aquilo que o outro quer. O desenhador de luz quando viu disse logo isso, a nossa geração tem esta mania da terapia juvenil e isso pode ser uma leitura muito interessante. Assim como a metáfora de nos colocarmos no lugar do outro. Assim como a propensão para achares que sabes o que o teu pai diria só porque é mais velho e é de determinada forma”, conta Sara Inês Gigante.
Não há como não relacionar este YOLO à biografia da sua criadora. Quando alguém fala sobre comprar um terreno, quando alguém sonha ter uma casa diferente, sabemos o que isso quer dizer — e aqui está o autor deste texto também a achar que percebe o que os outros sentem — sabemos que há qualquer coisa que estica o dedo do meio à forma como vivemos nas cidades, por exemplo. Há uma recusa perante o a forma de vida urbana ocidental.
“Sei que o plot do espectáculo acaba por falar disso em duas frentes: a casa em que eles vivem vai ser vendida e isso é um drama, eles vivem juntos numa comunidadezinha e de repente ficam sem a casa; e o plano B, a alternativa de sair de Lisboa e comprar um terreno. A minha intenção era que isso servisse apenas como fio condutor para outras coisas serem faladas, que através desta história falemos de questões profissionais, conflitos geracionais, conflitos amorosos, vários tipos de conflitos que estes jovens, tendo estas idades entre os 20 e os 30, sentem nas suas vidas. E claro que me servi das coisas que vêm de um sítio biográfico, de eu de facto querer ter um terreno, com os amigos junto a mim, num sítio fora de Lisboa. Isto é real”, diz.
Esta rapaziada ainda consegue curtir a passagem de ano na YOLO Living. Um réveillon entre o amoroso e o deprimente, com promessas de plantar morangos. Esta é a primeira vez que Sara Inês Gigante gritou ao mundo, artisticamente, embora a criadora lhe chama outra coisa: “É uma espécie de um vómito. Não se fala muito destas coisas e nisso inspirei-me bastante nas crónicas do [advogado] João Marecos, sinto que ele enquanto jovem hiper bem-sucedido tem uma consciência muito lúcida daquilo que são as dificuldades de ser jovem hoje. Se estou a sentir isto, se isto me está a ocupar a cabeça agora, se eu sou artista e quero fazer um espectáculo, é sobre isto que vou fazer. Quanto mais não seja porque há coisas que gostava de dizer ao mundo, a liderança está bastante velha, na minha opinião, a opinião está com uma massa de gente maioritariamente mais velha, é como se sentisse que estamos a ser liderados por uma geração que não é a nossa, nunca temos espaço. Enquanto jovem artista, porque não trazer isso para esta minha primeira tentativa? O que é que é meu que pode ser dos outros ou o que é que é meu que pode servir qualquer coisa para alguém?”