Uma pilha de discos, dois braços humanos e uma aparelhagem. É o que temos. Por outra: é aquilo que a mínima luz de secretária permite vislumbrar. Ouvir conseguimos, de tal forma que quando o DJ coloca o primeiro disco a tocar logo detetamos um tom de musical, West Side Story, pois claro, que mais havia de ser. O segundo tema prossegue no musical: “Let The Sunshine In”, do icónico filme americano Hair (1979).
A luz abre, entra a “Come Together”, dos Beatles e 20 pessoas — num grupo que mais diversificado seria difícil — invadem o palco. Mas só quando “Let’s Dance”, hit lendário de David Bowie, toca na aparelhagem é que os corpos se movem, cada um a seu jeito e vontade, num registo profundamente pessoal, do movimento típico de cowboy ao célebre ancas-mostrem-o-que-valem temos de tudo. The Show Must Go On é um dos mais consagrados espectáculos de um dos mais importantes criadores franceses das últimas décadas, Jérôme Bel e apesar de ter estreado no longínquo ano de 2001, em Paris, ainda por aí anda, pronto para curvas e contracurvas, e pronto para passar pela Culturgest, em Lisboa, de quarta a sábado — depois de passagens pelo Teatro Nacional São João logo em 2002 e pelo Teatro Viriato e pelo Rivoli já este ano.
A última vez que conversámos com Jérôme Bel era outubro de 2019, a propósito de Rétrospective, documentário que passou pelo IndieLisboa e que detalhava o processo de criação do coreógrafo francês de forma muito particular. Nesse filme, estava também The Show Must Go On, título que parece ser sempre indicado, mas talvez ainda mais agora. E que nos precipitou numa pergunta com rasteira: o que mudou desde a última vez que falámos? “Um ano e meio. E que momento. Muitas coisas mudaram, mas como de costume para mim é muito cedo para entender, demoro sempre muito tempo para ser capaz de simbolizar as profundas evoluções da minha vida e ainda mais do meu trabalho. O que te posso dizer é que trabalhei muito neste último ano. Na verdade, por razões ecológicas, decidi há mais de dois anos que não ia apanhar mais aviões. Isso fez com que tivesse estabelecido meios para ensaiar via videoconferência. Quando a pandemia fechou fronteiras, vários curadores espalhados pelo mundo — Taiwan, China, Áustria, Itália, etc — propuseram-me projetos… Foi o pânico total, trabalhei em sete projetos em simultâneo, foi a loucura. O facto é que me senti muito privilegiado por poder continuar a trabalhar, tornou este período horrível menos doloroso”, explica.
Em 20 anos, um espectáculo não tem como não mudar, não mudar uma vírgula aqui ou um travessão na direita alta. Mas da primeira vez que The Show Must Go On visitou Portugal, em 2002, Jérôme Bel ainda não tinha decidido aniquilar ao máximo a sua pegada de carbono, pelo que elenco que se apresentou no Porto era o elenco original, selecionado num workshop feito em Amesterdão em 1999. Duas semanas de trabalho que por terem corrido de forma tão fluída valeu um posto de trabalho na companhia de Jérôme Bel a todos os participantes.
Um deles foi Henrique Neves, bailarino português, residente em Lisboa, que se tornou um dos assistentes mais regulares e “brilhantes” de Bel, segundo o mesmo. Foi por confiar enormemente no trabalho de Henrique Neves que o francês teve esta ideia de fazer uma versão portuguesa do espectáculo, que agora chega à Culturgest. Mas é claro que, em tanto tempo, aquilo que Bel tinha pensado como elenco se foi alterando: “Com o passar dos anos, mais de 20 anos já, a ideia do elenco evoluiu. O meu trabalho com intérpretes com deficiência no Theater Hora, em Zurique, e depois no Gala [espectáculo feito com pessoas com deficiência que passou pelo Maria Matos em 2016], teve uma influência significativa para pensar este elenco. Na verdade, quis ter mais diversidade. O elenco original era composto por pessoas da mesma idade e cultura. O elenco de hoje cultiva proativamente a maior diversidade possível e eu estou muito feliz por isso”, conta.
Voltando ao palco, a ironia abunda. Não há como não rir quando “I Like To Move It” entra e t-shirts voam, barrigas fazem de bombo-dança, coisas assim. E a paródia continua quando, já com o palco vazio e um foco de luz recortado, o DJ assume o seu momento de protagonismo quando “Private Dancer”, de Tina Turner começa a tocar. A “Macarena” também não podia faltar, aquela ode ao momento do copo de água pós casamento em que o amigo mais embriagado traz a mãe da noiva para dançar. Nem o “My Heart Will Go On”, de Céline Dion, com direito a uma recriação do amor na proa protagonizado por Leonardo Di Caprio e Kate Winslet em “Titanic”. Em todo este material, em todos estes gestos, há uma evidência que quer questionar as convenções da dança e do teatro, uma espécie de ilusão que contorne a expectativa do espectacular, aquela sensação que nos faz esperar sempre o maravilhoso, o virtuoso, o tecnicamente perfeito. “Este espectáculo foi uma resposta a uma questão que tinha à época: como pode o teatro sobreviver tendo em conta o poder dos outros media como a televisão, o cinema e a internet? Foi necessário encontrar o que correspondia à especificidade do teatro. O que, apesar das suas vulnerabilidades técnicas, o teatro tinha e os outros media não. Então, tive de desconstruir o teatro para mostrar o que ele tinha de único. Foi como uma operação de última oportunidade, para tocar o coração, a raiz do teatro. Foi necessário remover, assim acredito, o espectacular. Não devemos combater o poder dos media modernos, mas, pelo contrário, talvez devamos regressar ao arcaísmo do teatro: pessoas sentadas no escuro vendo outras pessoas levantadas na luz”, confessa.
Por outro lado, sobra ainda o diálogo com o título do espectáculo, que é obviamente roubado aos Queen e que prevê a tal leitura da exploração da continuidade, num mundo onde nos dizem desde jovens que parar é morrer como se não tivéssemos direito a alguma lentidão, parar — talvez isto não nos digam de forma tão assumida — é ser engolido pela máquina chamada neoliberalismo. Mas a continuidade também pode ser aquela atitude de continuar a lutar, continuar a exigir melhores condições de vida. “Claro que aqui está a luta contra as injunções do capitalismo (simbolizadas por esta música pop e comercial que usamos no espectáculo), produzir, trabalhar, ser mais eficiente, etc. A principal provocação do espectáculo foi que os intérpretes fizessem o mínimo possível. Normalmente, num espectáculo de dança espera-se que os bailarinos saltem muito, façam algo de espectacular, especialmente quando há música ao vivo. A minha estética foi posta em prática no início dos anos noventa e acho que foi uma reação aos oitenta que, não esqueçamos, foram os anos em que o neoliberalismo foi colocado em ação e que veio a incorporar um capitalismo de uma arrogância nunca alcançada. The Show Must Go On opõe uma certa inércia a este projeto do individualismo, competição e destruição da solidariedade entre indivíduos. Penso que a peça, timidamente, mostra um ténue brilho de uma possível resistência, de algo que nos intérpretes em palco que não pode ser completamente destruído pela indústria cultural liderada pelo capitalismo. É muito pequeno, mas está lá”, diz. E se está lá, a esperança ainda respira. Vai mais um disco?