Fernando Medina fez questão de sublinhar várias vezes o tempo “recorde” em que conseguiu apresentar dados de uma auditoria e os dias de trabalho intenso que os funcionários da autarquia enfrentaram para que esta sexta-feira o autarca pudesse confirmar que, pelo menos, em 52 manifestações junto a Embaixadas foram enviados dados pessoais dos encarregados.

Consequências? Medina confirmou que haverá uma reestruturação nos serviços da autarquia com a exoneração do encarregado de proteção de dados e a extinção do gabinete de apoio à presidência, mas não descarta que no decorrer da auditoria alargada possam ser tomadas outras medidas. Auditoria não confirma envio de dados ao ministério dos Negócios Estrangeiros russo, informação que tinha sido dada aos encarregados da manifestação anti-Putin, por e-mail, pelos serviços da autarquia.

Aos pedidos de demissão, Medina responde que sempre considerou que “a quatro meses de autárquicas aceitar um pedido de demissão e apresentar um processo de recandidatura é um número impróprio da confiança que os cidadão precisam”. Considera o autarca que a única forma possível de ter a confiança das pessoas é com “verdade” e que “tudo o resto é demagogia, um número político para a espuma”, respondendo assim a Carlos Moedas que o acusou de cooperar com o regime russo e pediu a sua demissão.

“A Câmara valoriza a gravidade daquilo que sucedeu, nunca a diminuímos, nunca a escondemos”, começou por dizer Medina que garantiu que a autarquia “tudo fará para devolver a tranquilidade a todos aqueles que, por erros do município de Lisboa, possam ter visto essa tranquilidade e sentimento de segurança abalado”.

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Numa auditoria com três dezenas de páginas, que será enviada à Comissão Nacional de Proteção de Dados e ao Ministério Público, as conclusões ocupam três delas. Medina reconhece que o protocolo sobre manifestações “não é claro relativamente ao teor do que devia ser comunicado às embaixadas” e informa que ainda que tenha havido alterações depois de 2018 com a entrada em vigor do RGPD o “procedimento de tramitação de avisos de manifestação não sofreu alterações” até abril de 2021, na sequência da queixa apresentada pelos manifestantes a 18 de março deste ano.

Entre 2012 e 2021 foram realizadas 7.045 manifestações na cidade, ou seja, três a quatro manifestações por dia desde que esta competência passou para as mãos da autarquia.

Das mais de sete mil manifestações, 180 foram comunicadas a embaixadas. 122 ocorreram antes da entrada em vigor do RGPD e 58 depois. Destas 58 manifestações em 52 foram “enviados dados pessoais”. Dado o elevado número de manifestações a auditoria versou apenas o que aconteceu depois da entrada em vigor do RGPD. Fica por saber das 122 manifestações em quantas houve lugar ao envio de dados dos encarregados para as embaixadas, algo que Medina remeteu para a auditoria alargada (sem adiantar previsão de conclusão da mesma).

Mas Medina não está sozinho nas falhas. O relatório é claro a mencionar que também nos anos “de 2012 e seguintes” foi identificada “documentação em suporte papel” que “contém variados dados pessoais de promotores de manifestação”.

Como resultado da auditoria, o município determinou delegar na polícia municipal as competências sobre a realização de manifestações, que deverá encaminhar “unicamente” para a PSP e ministério da Administração Interna a informação necessária; extinguir o gabinete de apoio à presidência; exonerar o encarregado de proteção de dados; e ainda fazer uma análise externa da robustez e criticidade do sistema de proteção de dados.

Medina contraria ex-Governador Civil António Galamba

Depois do ex-Governador Civil António Galamba ter afirmado que era “impensável” divulgar dados dos promotores de manifestações, Fernando Medina afirma que tem documentos que o contrariam. Segundo Medina a prática do Governo Civil, em 2002, era a de transcrever na íntegra os avisos de manifestação pelo que, caso os avisos tivessem dados pessoais, estes seriam transmitidos também na íntegra.

Câmara Municipal de Lisboa. Ex-Governador Civil diz que era “impensável” divulgar dados dos promotores de manifestações

Dos documentos entregues aos jornalistas, é possível confirmar que no caso de uma manifestação para “evocar as infrações do direito internacional cometidas pelo Estado de Israel na ocupação dos territórios palestinianos” que se realizou no dia 26 de janeiro de 2011 em frente à residência oficial do primeiro-ministro a comunicação menciona o nome de um dos manifestantes acrescentado de “e outros”, sem mais, tendo sido remetida ao chefe de gabinete do primeiro-ministro,  ao ministro da Administração Interna, ao ministro da Presidência, ao chefe de gabinete da Câmara Municipal de Lisboa, ao Juiz Conselheiro do gabinete do sistema de Segurança Interna, ao ministro dos Negócios Estrangeiros e ao Embaixador de Israel.

Além deste exemplo divulgado, diz Medina que durante todos os Governos Civis no caso de manifestações em que os promotores não eram associações coletivas, os nomes dos primeiros promotores de cada manifestação eram divulgados.

A autarquia já tinha explicado anteriormente que este “erro lamentável” — palavras de Medina — resultou da má aplicação de um protocolo que existe desde 2011 — altura em que as câmaras passaram a ter competência nesta matéria. Nos últimos dias, a Câmara de Lisboa esteve a fazer o levantamento de todas as manifestações que decorreram neste período e perceber em que momentos é que houve (ou se houve) envio de dados pessoais para autoridades estrangeiras. O período em que António Costa foi presidente da Câmara também foi passado em revista.

Recorde-se que a Câmara Municipal de Lisboa fez chegar por e-mail os nomes, as moradas e os contactos telefónicos de três manifestantes anti-Putin à embaixada russa em Lisboa e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país.

O caso remonta a janeiro de 2021, quando três cidadãos (dois deles com dupla nacionalidade, russa e portuguesa) organizaram uma manifestação contra o regime de Moscovo a propósito da detenção do ativista Alexei Navalny, num protesto que decorreu junto à embaixada.

Ora, como dita o protocolo, para terem autorização de organizar a manifestação, os promotores tiveram de enviar os dados pessoais (nome, número de identificação, morada e contacto telefónico) para a Câmara Municipal que, depois, devia fazer chegar esses mesmos dados à PSP e às autoridades competentes.

Acontece que a Câmara não se limitou a enviar estes dados para a PSP; os serviços de autarquia enviaram também a informação para a embaixada russa em Lisboa e para o Ministério dos Negócios Estrangeiros russos.

Depois de o Observador e o Expresso terem revelado o caso, outros informações foram sendo avançadas. Em 2019, a Câmara de Lisboa também comunicou detalhes de manifestação pró-Palestina à embaixada de Israel. As representações diplomáticas da China e da Venezuela também foram informadas de manifestações.