O próprio Tribunal Constitucional não quer ser deslocado de Lisboa para Coimbra, transferência que será debatida e votada esta semana na Assembleia da República. O parecer do Palácio Ratton a esta transferência é negativo e arrasa por completo os argumentos da proposta do PSD. No documento, ao qual o Observador teve acesso, os juízes-conselheiros contestam que esta seja uma medida de descentralização, desvalorizam os outros exemplos europeus, dizem que teria uma “carga simbólica negativa” e que seria um “grave desprestígio” para o TC.

O parecer, que está nas mãos dos deputados, foi emitido a 14 janeiro de 2021, embora não tenha ainda sido divulgado nem utilizado na troca de argumentos públicos e políticos sobre o assunto. Houve apenas dois juízes-conselheiros — Manuel Costa Andrade (professor catedrático na mesma universidade), que era na altura o presidente do TC, e Mariana Canotilho (professora na Universidade de Coimbra) — que discordam do parecer e contestam de forma muito crítica algumas das expressões do documento.

No parecer, os juízes-conselheiros fazem questão de rebater, ponto por ponto, os argumentos da proposta do PSD. O primeiro argumento do partido liderado por Rui Rio rebatido é a “independência do poder judicial em relação ao poder político”. Ora, para os juízes, essa independência que o TC “tem missão de controlar não está seguramente em causa ou carece de afirmação simbólica”. Acreditam os juízes que, “pelo contrário, a transferência da sede por decisão do poder político teria uma carga simbólica negativa, degradando a perceção pública da autoridade, autonomia e relevância do órgão”.

Os juízes-conselheiros acreditam que “a transferência seletiva da sede de um órgão de soberania, baseada em qualquer critério que não seja o da natureza e dignidade constitucional das funções que desempenha, não poderia deixar de constituir um grave desprestígio”.

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Ainda dentro deste argumento do afastamento do poder político, o PSD dá como exemplo a Alemanha, em que o Tribunal Constitucional Federal está sediado em Karlsruhe. Para os juízes a “analogia com o caso alemão é infundada“. Desde logo porque o facto de o Tribunal ter sido logo fundado em Karlsruhe “não tem a carga simbólica da transferência”. Acresce, afirmam os juízes-conselheiros, que a opção alemão ocorreu por “indisponibilidade da capital histórica (Berlim) no momento da criação do órgão.”

O TC vai mais longe e aborda ainda outros exemplos, registando que “os casos europeus de órgãos de soberania fora da capital, todos têm determinadas particularidades”. Isto porque a Confederação Helvética, a Federação Russa e a República Federal da Alemanha “são entidades federais” e a República Checa tem uma organização que advém da anterior Checoslováquia.

Não é medida de descentralização e saída de Lisboa “desprestigia o órgão”

Os juízes rejeitam ainda o argumento da descentralização, alegando que a tranferência da sede para fora da capital “não constitui uma medida de descentralização no sentido — jurídico-administrativo — rigoroso e próprio do termo”. Para o TC descentralização passaria por um “reforço das atribuições ou de autonomia das autarquias locais”.

No limite, os juízes até admitiam que a transferência podia ser interpretada num sentido mais lato como algo que promove a proximidade do poder em relação aos cidadão, mas “num país com uma tradição antiga de centralismo, em que os órgãos de soberania sempre tiveram a sede em Lisboa, a transferência da sede do TC contribuirá mais certamente para desprestigiar o órgão do que para criar uma nova centralidade fora da catital.”

Sobre o argumento, também utilizado pelo PSD, de Coimbra ter uma “forte tradição de ensino de direito” e de ter um “centro dedicado à jurisprudência”, os juízes-conselheiros destacam que esta é de uma “pertinência” que “está longe de ser evidente”. Ora, explica o TC, “uma instituição cultivar o estudo da jurisprudência é irrelevante para a questão da localização do TC”.

Os dois juízes que discordam do parecer (e são professores em Coimbra)

Houve dois juízes do Tribunal Constitucional que apresentaram argumentos contrários aos que constam do parecer negativo à transferência do órgão de Lisboa para Coimbra. Mariana Canotilho, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e filha de um dos maiores constitucionalistas de Coimbra (Gomes Canotilho), é muito crítica do parecer. Para a juíza-conselheira, na Constituição “não se refere em local algum à capital do país”, alega que a “localização dos órgãos do Estado é matéria estritamente política” e que o TC  limitar-se a assinalar (não a ponderar) os eventuais constrangimentos de ordem prática.”

Desta forma, destaca Mariana Canotilho, o TC “atribuiu-se uma competência que devia competir ao legislador”. Além disso lamenta que o parecer parta de uma “premissa inaceitável: que a mudança de localização seria uma diminuição do prestígio e autoridade institucionais”. E acrescenta: “É um insulto do qual me demarco.”

Manuel Costa Andrade — professor catedrático da Universidade de Coimbra, e à altura do parecer presidente do TC (sairia no mês seguinte para dar lugar ao atual presidente, João Caupers) — também dá vários argumentos contrários ao parecer que o colégio por larga maioria aprovou. Para Costa Andrade é, desde logo, necessário “dar como líquida e incontornável a premissa de que é ao Parlamento que assiste a legitimidade e a competência para decidir a sede do TC”.

Na mesma linha de Mariana Canotilho, defende ainda que “qualquer chão nacional tem a mesma dignidade e legitimidade para acolher o TC” e que “não se descortinam razões com a pertinência e o peso bastantes para contrariar o propósito de transferir o Tribunal para fora de Lisboa”.

A proposta de transferência do Tribunal Constitucional é debatida esta quinta-feira e votada na sexta-feira. Rui Rio disse esta terça-feira que tem “fortes esperanças” que “a maioria” dos partidos seja coerente com o que tem defendido (António Costa já defendeu esta ida do Tribunal Constitucional para Coimbra em 2018) e que a proposta do PSD seja aprovada.

Rio reage: “Só falta dizer que o TC não pode ir para a província”

Rui Rio reagiu pouco depois de o Observador revelar o parecer dos juízes-conselheiros, criticando o teor do documento.

O presidente do PSD ironizou: “Só falta dizer que o TC não deve ir para a PROVÍNCIA; o termo que no tempo da outra senhora, se usava na capital para falar do resto do País. É tão triste olhar para o País assim”.

Artigo atualizado às 11h16 com reação do presidente do PSD, Rui Rio