Quando Tiago Rodrigues, diretor do Teatro Nacional D. Maria II, lhe sugeriu, em 2019, que apresentasse uma leitura atual da peça Pranto de Maria Parda — de Gil Vicente, escrita no rescaldo de 1521, ano devastador para Lisboa, marcado pela doença, seca e fome — a primeira reação de Miguel Fragata, quase por instinto, foi querer recusar o convite. Não por se opor à ideia de pegar em textos clássicos portugueses e abordá-los de forma menos convencional, ancorando-os a temas contemporâneos (já lá iremos), mas por causa do autor em causa.
“A minha relação com Gil Vicente nunca foi a melhor. Achava que as suas peças tinham pouca relação com o presente, que lhe faltava alguma universalidade. Via-o ligado a personagens-tipo muito estereotipadas”, conta o encenador ao Observador.
A sugestão de Rodrigues vinha estruturada no contexto do Próxima Cena, o novo programa itinerante que o Teatro Nacional D. Maria II estreia nesta temporada de 2021/22 e que se propõe a levar peças de “pendor mais clássico, português, a locais com baixa densidade populacional onde o teatro não costuma chegar”, explica ainda Fragata, cuja versão do Pranto de Maria Parda marcaria o arranque da primeira edição deste projeto. Marcaria? Isto é, marca, pois o espectáculo, um monólogo interpretado por Cirila Bossuet, estreou-se esta quinta-feira, 21, em Lisboa, e pode ser vista de quarta a sábado às 19h30, e ao domingo às 16h30, até 5 de novembro.
A peça deveria ter estreado março de 2021 em Tondela, mas a pandemia trocou novamente as voltas a Miguel Fragata, que precisamente um ano antes viu o primeiro confinamento cancelar a estreia de Fake — criação sua e de Inês Barahona, com quem fundou a produtora Formiga Atómica — a apenas uma semana de subir ao palco.
A 9 e 10 de novembro, o Pranto de Maria Prado passa pelo palco da Associação Cultural e Recreativa de Tondela, a 15 do mesmo mês apresenta-se no Festival de Teatro de Viana do Castelo, a 18 e 19 em Ponte de Lima e a 25 e 26 em Vinhais. Dezembro traz duas datas em Ourém, nos dias 10 e 11, enquanto a 21 e 22 de Janeiro espectáculo atravessa o Atlântico para duas noites no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada — e para julho de 2022 está já agendada uma ida ao Funchal, na Madeira.
Desta vez as contingências da pandemia apanharam Fragata (e apenas Fragata, sem envolvimento da Formiga Atómica) numa fase ainda inicial do projeto, o que permitiu que a nova realidade pandémica proporcionasse ainda mais uma leitura na criação do próprio espectáculo.
Em 2021 como em 1521?
Pranto de Maria Parda, com interpretação de Cirila Bossuet, é um espectáculo que se propõe “vaguear pelas ruas de Lisboa à escuta da voz daqueles que a cidade escolheu deixar de lado, hoje, como há cinco séculos”, lê-se na folha de sala que acompanha o espectáculo.
Há precisamente 500 anos, a peste estava em Lisboa. Faltavam alimentos e morria-se de fome. Para tentar melhorar a situação, a coroa reduziu o imposto sobre o pão mas, por outro lado, decidiu taxar o pouco vinho disponível, encarecendo-o. Foi por reação a esse imposto que Gil Vicente escreveu este texto e criou a personagem Maria Parda: alguém que aparece “no folclore ibérico como estando próxima da velha, da alcoviteira, da mulher do povo que lança umas tiradas de senso comum”.
Em 1521, Maria Parda é uma mulher alcoólica que faz um pranto por causa da ausência do vinho. Ela vagueia pelas ruas de Lisboa sem reconhecer a cidade assolada pela fome e pela peste, queixando-se da escassez de vinho e do seu preço. Enquanto procura por tabernas com ramos nas portas (simbolizam a entrada de vinho novo nos estabelecimentos) ela depara-se com um cenário desolador: a cidade está deserta e ela não quer continuar a viver.
Já em 2021, Maria Parda é uma mulher para quem Lisboa “está irreconhecível, desfigurada pela gentrificação, pela presença (e ausência) do turismo, pela pandemia”. O convite para fazer esta peça surgiu em 2019, ou seja, antes da pandemia. Por esse motivo, o ponto de partida para Fragata pegar no texto foi a urgência de falar sobre a cidade, sobre a questão racial, sobre a condição feminina, como explica. “Estas são questões estruturantes que sempre me interessaram muito e sobre as quais sinto que há esse apelo para falar e refletir em conjunto e para propor um objeto artístico que resulte dessa reflexão.”
Assim, o encenador ouviu quem o pudesse ajudar a compreender melhor estas questões. “Foi importante munirmo-nos de pessoas que pudessem dar diferentes perspetivas. Foi um processo longo de pesquisa. Fizemos, por exemplo, um percurso pela Lisboa Africana, que é uma tour organizada por Naky Gaglo. Foi marcante por causa das pistas ligadas à escravatura.”
Dessa viagem pelo centro da cidade, Fragata partiu para uma reflexão mais alargada na qual participaram o ativista antirracista Mamadou Ba, a jornalista Joana Gorjão Henriques, o investigador em estudos urbanos António Brito Guterres ou, entre outros, José Camões, especialista em Gil Vicente. Os sociólogos de formação Capicua e Chullage trataram da música.
Ao longo dos séculos convencionou-se de que Maria Parda seria uma mulher negra, embora, como recorda Fragata, não haja memória de ter alguma vez ter sido interpretada por uma atriz racializada.
“De repente, aconteceu a pandemia, o que acabou por aproximar ainda mais o tempo que estamos a viver do tempo em que a peça foi escrita”, diz, em referência às paisagens das ruas vazias que marcaram o primeiro confinamento, por oposição com as imagens de transportes públicos de madrugada apinhados de trabalhadores das periferias para quem o teletrabalho não era opção.
“O que foi muito interessante neste processo foi desconstruir e fazer esta reflexão forte sobre o racismo, e de percebermos, em conjunto, elementos brancos e negros na equipa, como num tema tão sistémico há comportamentos que precisam mesmo de serem desconstruído, e que há vocabulário que precisa de ser reformulado e repensado. Todo esse processo foi feito em equipa e foi completamente transformador.”
A próxima Próxima Cena
“O projeto Próxima Cena assenta na universalização do acesso à cultura e no desenvolvimento e valorização de públicos, em territórios de baixa densidade populacional”, informa o departamento de comunicação do TNDM. Miguel Fragata já tinha passado por Tondela, enquanto encenador, com a sua companhia Formiga Atómica. Em Ponta Delgada também já esteve, mas apenas enquanto ator. Ponte de Lima, por outro lado, será uma estreia absoluta, tal como Vinhais — tudo isto locais por onde Pranto de Maria Prado irá passar.
No que toca a colaborações com esta vila do distrito de Bragança, Fragata pensa que será também uma estreia para o próprio TNDM, e compara este ato de angariar espectadores, de criar público, em localidades onde espectáculos desta índole não costumam acontecer, com a “pesca à linha”: “Muitas vezes, em lugares onde não há tanta prática de assistir a espectáculos, é muito importante fazer-se esse trabalho. Fazerem-se conversas a seguir aos espectáculos. Estar lá para responder a perguntas. Propor objetos de mediação como oficinas ou exposições. Coisas que possam dialogar com os objetos e que possam fazer a ponte entre a obra e os espectadores.”
“Há todo um caminho que está por fazer”, insiste o encenador. “Há uma ausência de prática cultural, de criação de espectadores. Nalguns casos, é um trabalho que se está a fazer ainda quase do zero. Isto leva tempo e precisa mesmo desse trabalho feito a passo e passo, de um para um”, conclui.
Pranto de Maria Parda devia ter estreado em março. Isto é, devia ter estreado na temporada anterior, enquanto a atual seria a da chegada a novos palcos da segunda edição do Próxima Cena, centrada no projeto Os Lusíadas Como Nunca Os Ouviu, o one man show em que António Fonseca faz uma “falação” da obra de Luís de Camões. “Um texto está escrito num código. Quando falo, o texto passa para o campo do oral. É o ato de falar que faz isto”, explica António Fonseca, rejeitando por completo o termo declamar — “detesto”.
De modo a compensar o tempo perdido, optou-se por correr as duas edições de seguida. Assim, o primeiro trimestre de 2022 verá Os Lusíadas Como Nunca Os Ouviu ser apresentado em Montemor-o-Novo (20 a 22 de janeiro), Sever do Vouga (27 a 29), Mértola (3 a 5 de fevereiro) e Torre de Moncorvo (10 a 12) antes de António Fonseca fazer uma “falação” integral dos Lusíadas em Lisboa, no TNDM, a 26 de março — as datas anteriores terão sessões de cerca de duas horas e meia, nas quais só alguns cantos serão alvo da sua atenção.
É que ler em voz alta os dez cantos dos Lusíadas da forma como Fonseca o faz é tarefa para demorar oito horas úteis, fora intervalos. “Os espectadores podem entrar e sair quando quiserem, não interrompem nem chateiam nada”, assegura Fonseca, que trabalha a “falação” dos Lusíadas há 12 anos. A integral na Capital Europa da Cultura, que em 2012 coube a Guimarães, foi um dos pontos marcantes deste trabalho.
Fonseca encerrou este projeto depois de ter gravado um audiolivro com a “falação”. Ou pelo menos julgava que o tinha encerrado, mas o facto de em 2022 se cumprirem 450 anos desde que a primeira publicação da epopeia levou-o a regressar à obra poética de Camões. Será, garante, a última vez que alguém ouvirá ao vivo Os Lusíadas Como Nunca Os Ouviu.