Pedro Patê é a prova de que ninguém escolhe a família em que se nasce. Calhou-lhe em sorte ser filho de dois cantores de ópera, Faustina Balão (Cátia Moreso) e Bellini Bel Canto (André Henriques), e de ele próprio viver enclausurado dentro de uma — ser acompanhado por uma orquestra quando vai à casa de banho fazer xixi, por exemplo, causa-lhe enorme confusão e perplexidade.
Interpretado pelo ator André Magalhães, Pedro Patê é o pivô de “O Anel do Unicórnio – uma Ópera em miniatura”, em cena no LU.CA — Teatro Luís de Camões, em Lisboa, até 19 de dezembro. É a única personagem que não canta. “É através dele que o público infantil vai poder projectar as suas dúvidas, porque ele vive dentro de uma ópera e não sabe porque é que todos falam a cantar e porque é que há sempre uma orquestra a tocar. São dúvidas perfeitamente legítimas que também o público poderia ter”, explica Martim Sousa Tavares, o jovem maestro que criou esta mini ópera com o encenador Ricardo Neves-Neves e Ana Lázaro, que escreveu o libreto.
Martim compôs a música que se ouve nos cerca de 50 minutos de “O Anel do Unicórnio – uma Ópera em miniatura”, que tem referências diretas — mas sempre curtas — a óperas clássicas. “Tem uma estrutura mesmo operática, de recitativos e árias, um libreto em três atos em que o primeiro é exposição, o segundo é o imbróglio e o terceiro a resolução de todos os conflitos. Passa-se tudo num arco de 24 horas, portanto numa lógica aristotélica. E tudo fica bem no fim. É uma comédia de enganos. A sua própria estrutura assemelha-se à de uma ópera. Mas está cheia de sonoridades diferentes e tópicos que são, se calhar, um pouco mais do nosso tempo”, acrescenta Martim.
Farto de ouvir ininterruptamente árias, cavatinas e intermezzos, Pedro Patê decide tornar-se ilusionista. O sonho é descobrir o truque de magia que finalmente acabe com a ópera na qual a sua vida se tornou. O espectáculo começa com Faustina Balão — “uma brincadeira com o nome Faustina Bordoni, uma verdadeira diva da ópera”, explica Ana Lázaro, autora do texto — a meter a peruca do marido no fogão sem querer, porque a confunde com molho pesto. A casa está cheia de fumo. A certa altura o gato de estimação de Faustina Balão, Don Giovanni, desaparece misteriosamente. E logo no dia em que ela e Bellini Bel Canto, um ex-barbeiro de Sevilha, celebram as suas Bodas de Prata.
O espetáculo mistura conceitos da ópera — “em que há uma ária e se percebe que a orquestra tem de estar lá, e que sem música aquilo não funciona” — com uma série de nuances mais ligadas ao imaginário infantil. É simples, mas nunca simplista. A ideia, explica Martim, seria mesmo essa: “Este espectáculo nasceu da vontade de fazer uma coisa que abrisse portas para o mundo operático em sentido lato. Isto é uma meta ópera: é uma ópera sobre a própria ópera, e que se explica a si própria. É sempre interessante poder refrescar o repertório infantil porque podemos assumir, com 99% de certeza, que será a primeira ida à ópera para a grande maioria das crianças que virão ao espectáculo.”
Se a ópera é um género “pouco praticado e cultivado em Portugal”, a ópera infantil será então um nicho dentro de um nicho. “Não é que não existam óperas infantis, porque existem e são até muito boas, só que simplesmente não se fazem”, ressalva o músico. Nesse caso, como é que esta ópera em miniatura, e logo uma criação original, surge em palcos portugueses? A resposta é simples: como reação a um desafio lançado por Susana Meneses, diretora do LU.CA — Teatro Luís de Camões, na Calçada da Ajuda, em Lisboa, que queria encomendar um espectáculo que se aproximasse da natureza histórica daquela sala.
“Isto era um teatro para ópera de bolso que fazia parte dos anexos do antigo palácio de Belém, onde nunca mais se fez ópera. É um teatro à italiana com um pequeno fosso de orquestra”, conta Martim, que recorda ainda de como o convite nem sequer especificava a criação de uma obra original. “Eu podia escolher um título de repertório e o Ricardo [Neves-Neves] encenava. Mas rapidamente chegámos à conclusão que não havia repertório que se adaptasse às dimensões tão sui generis daquela sala e que teríamos de fazer um espectáculo novo, à medida do LU.CA, e adaptarmo-nos depois aos outros teatros por onde isto ia passar.”
“Loulé e Guimarães foram os seguintes a pôr a mão no ar para receber o espectáculo. “O Anel do Unicórnio – uma Ópera em miniatura” estreou no Cineteatro Louletano a 19 de novembro e passou pelo Centro Cultural de Vila Flor, em Guimarães, de 25 a 27. “Em Loulé foi um palco de médias dimensões, enquanto Guimarães tem uma sala de grandes dimensões. Este é um espectáculo que tem de se adaptar a todas essas condicionantes. Daí ter um cenário modular que se expande e contrai, e que no caso do LU.CA vai estar muito concentrado, mas em outros palcos ganha uma certa amplitude”. Refira-se, a propósito, que em 2022 o espectáculo vai passar ainda por cidades como Odivelas, Ovar e Ílhavo.
Martim Sousa Tavares e Ricardo Neves-Neves foram desafiados pela diretora do LU.CA porque já tinham trabalhado juntos em 2019 em “Menina do Mar”, espectáculo no âmbito do centenário de Sophia de Mello Breyner que desde então já fez 54 récitas em Portugal. “Teve muito sucesso”, diz o músico. “Foi uma coisa muito vistosa na sua aplicação imediata, porque é um espectáculo para crianças e com um texto que faz parte do currículo escolar, o que traz sempre muito público. Três dos teatros por onde passámos com “Menina do Mar” quiseram a continuação dessa colaboração entre mim e o Ricardo Neves-Neves.”
Foi Ricardo Neves-Neves quem convidou Ana Lázaro a escrever o texto. “Estamos a falar de um libreto construído em verso, que tem uma métrica sempre regular. Que é uma coisa que já não se pratica muito — já não se escreve um texto à Camões com decassílabos do início ao fim, com um esquema rimático emparelhado, etc. Este libreto tem isso, o que lhe dá uma fluência que é particular, porque as coisas estão a rimar e batem certo. Eu acho que a Ana se deve ter divertido muito a escrever.”
Ana Lázaro é uma atriz de formação que se foi encaminhando para a área da escrita, com livros publicados e textos escritos para companhias de teatro e projectos próprios. Também tem trabalhado na área da prosa e dramaturgia para crianças. É a pessoa que, desde o início, Ricardo Neves-Neves, de quem foi colega de curso no Conservatório e com quem já tem trabalhado, convidou para escrever o texto.
“Fazer ópera foi uma novidade para mim. Tive de mergulhar em pesquisas… Por exemplo, o Martim disse-me para ler os libretos do Lorenzo da Ponte, Beaumarchais, Goldoni. Foi um verão a ver óperas. Não que nunca tivesse visto, mas nunca me tinha debruçado sobre a estrutura de um libreto ou de uma ópera. Foi uma aprendizagem”, conta.
“O que tentei fazer foi adaptar e adequar a linguagem para um público infantil. Acho que a ópera é conhecida por ser uma coisa elitista e difícil, por isso a ideia era desconstruir essa noção e dar-lhe uma dimensão divertida e acessível, com uma linguagem simples.”
Martim recorda de como a aconselhou a ler alguns libretos para entender a lógica do teatro cómico do século XVIII e entender o tipo de situacionismo que estas obras têm na caracterização das personagens, no enredo e no tipo de resolução desses problemas. “Pareceu-me que esse tipo de ópera era o modelo mais claro de toda a história. Ainda não é a ópera romântica, que tem uma grande ambição e renuncia ao que vem de trás, que não usa recitativos, com música sempre intensa do princípio ao fim. Também já não é a ópera barroca, que é uma coisa muito pesada, às vezes quase rocambolesca no seu ornamento. O século XVIII tem aquela clareza que vem do espírito iluminista e racional das coisas. Considerei que era a porta mais indicada.”
Para a escritora, o público infantil é o mais exigente: “É um público que não faz fretes. Ou gosta ou então começa a fazer barulho e vira as costas ao palco. Acho mesmo que é na infância que começa essa possibilidade de pensarmos além das coisas, de não nos enterrarmos em dogmas, e os miúdos são muito livres nisso. Escrever para crianças obriga a pensar como uma. Tudo pode acontecer e a imaginação não tem limites.”
Depois de meses de pesquisa e escrita, o libreto que Ana Lázaro entregou estava praticamente à prova de bala. Foram escassas as alterações que Martim Sousa Tavares lhe pediu quando começou a musicar o texto para a orquestra que acompanha o espectáculo em palco, como ditam as regras. Uma orquestra de seis elementos, isto é. “Chamamos a isto uma orquestra porque aqui é tudo em miniatura. São seis músicos, mas quase todos tocam dois instrumentos. Um do instrumentário mais clássico, outro mais moderno. Estamos a ouvir o contrabaixo [nos ensaios que tiveram lugar na Caixa Económica Operária, em Lisboa, antes da estreia no Algarve], mas ele também toca baixo elétrico. O violino troca com melódica. Conseguimos ter sons muito clássicos — flauta, harpa, violino, contrabaixo — mas também conseguimos puxar para aqui uma discoteca com os sintetizadores, o baixo elétrico e a bateria.”
“A ideia é isto ser uma coisa muito camaleónica em termos de estilo, porque por um lado queremos mostrar o que é a estética de uma ópera antiga, com algumas citações directas a obras de repertório, mas por outro não queremos que isto seja uma estranheza permanente. Por isso há música parecida com a que ouvimos na rádio. Ecletismo para mostrar que a ópera está viva.” Exemplo dessa bipolaridade é o cravo barroco que vai estar em palco, mas que dentro tem dois sintetizadores. “É como um móvel barroco cheio de luzes”.
O ensemble composto por David Silva (flauta), Ana Aroso (harpa), Mrika Sefa (piano eléctrico e sintetizador), Francisco Cipriano (percussão), Helena Silva (violino), Jorge Correia e Miguel Menezes (contrabaixo e baixo elétrico) é apresentado por Martim Sousa Tavares como a antiga equipa olímpica das Maldivas. “É formada por alguns membros do extinto Comité Olímpico. Por causa da subida do nível do mar, o local onde treinavam ficou submerso e tiveram de procurar outros caminhos para as suas vidas. Por isso criaram a Orquestra de Variedades das Maldivas. Como estão traumatizados, não aceitam tocar ao nível do mar, só a 2,50 metros de altura e sempre equipados com fatos de treinos”, aponta, fazendo referência à altura elevada — por cima do cenário — a que os músicos vão tocar. “Isto tudo é narrativa, porque na verdade somos todos mercenários de guerra”, diz, entre risos.