“Isto é muy grande, c******”
Estas foram, salvo melhor versão, as palavras dele quando subiu ao relvado da Luz para ser apresentado como jogador do Benfica, exatamente como a minha memória as conserva. Repito: não garanto que tenha acontecido assim na realidade, mas é como lembro, puto estonteado com a chegada de um deus, bebedeira das notícias demasiado boas para serem verdade antes sequer das primeiras experiências com minis de cerveja. Os microfones do pequeno batalhão de jornalistas (na altura, tudo somado, os meios eram incrivelmente menos) captando o desabafo e o deslumbre, a simplicidade desarmante daquele que, em Espanha, era “el português” e, em Portugal, sempre pareceu ter estranhamente qualquer coisa magnética, qualquer coisa enérgica, qualquer coisa alegre, confiante e desafiante de espanhol, em contraste com o choradinho nacional. Continuo a citar a frase volta e meia, sempre que a ocasião e a oportunidade para a graça o justifiquem. E que bom é que seja o que apetece também dizer depois de ver este primeiro episódio de “Futre – O Primeiro Português”. “Isto é muy grande, c******”. Ou, traduzido para português bem-comportadinho loucamente satisfeito: sim, senhor.
A julgar pela amostra, a nova série documental da plataforma de streaming da SIC poderia, como a personalidade que homenageia, jogar entre as melhores, lá na liga dos craques da Netflix. Não é inferior à média do filão de documentários sobre figuras do desporto que, com sentido oportunista, o mercado vem explorando; pelo contrário. A noção de oportunidade é aqui, aliás, uma questão interessante: Futre não morreu, não se perdeu, não está doente (ou assim esperamos, o diabo seja cego, surdo e mudo – ou simplesmente não tenha uma assinatura do Observador), não anda nas notícias por esta ou aquela razão, não faz anos disto ou daquilo. Não há, enfim, nenhum dos pretextos habituais para estas homenagens. Apenas uma, a única que importa: a admiração pela figura. A vontade de fazer justiça por uma história que ainda não tinha sido contada da forma que merecia.
[o trailer de “Futre – O Primeiro Português”:]
Produzido pela 313 e realizado por Nuno Garcia e César Mourão (sim, é o mesmo), “Paulo Futre – O Primeiro Português” é, pelo menos no primeiro dos seus seis episódios, tão fulgurante como o homem em epígrafe. Dispensando voz-offs e enquadramentos, vai direto ao assunto, com as mais empolgantes imagens de arquivo dos golos, das jogadas e até das faltas e das lesões, amplo acesso ao arquivo familiar (um filão surpreendente de imagens que nos dá acesso à intimidade da família Futre nos anos 80, com a patine do VHS) e fantásticos depoimentos de uma galeria de notáveis, brilhantemente editados, do próprio Futre aos filhos Paulo Futre Júnior e Fábio, de Figo a Rui Costa, de Butragueño a Rio Ferdinand, de Bernd Schuster a Franco Baresi, de Manolo a Mourinho, de Fernando Torres a Diego Armando Maradona Júnior.
O resultado é uma delícia para as duas gerações: a que viu Futre jogar e a que só agora tem o prazer de o descobrir. Porque Futre não é o comentador televisivo emocional, nem o ator que vende (com muito humor) soluções para a disfunção erétil, nem o candidato exaltado do discurso dos 19 jogadores +1, dos charters de chineses e do sócio concentradíssimo. Azarado por ter dado os melhores anos da sua vida a um clube (com o devido respeito, Atleti) menor, por ter vindo para o Benfica no início da pior década da vida do clube, para o Marselha quando este se preparava para perder tudo por escândalos de corrupção e por uma entrada em falta que quase lhe acabou com a carreira no jogo de estreia em Itália e, enfim, por ser português numa época em que o futebol nacional, para lá de Badajoz, não contava para o Totobola, Futre foi, como alguém lhe chama a determinado passo, “a bandeira de Portugal” e um dos melhores jogadores do mundo.
A velocidade, as fintas, a criatividade endiabrada, mas também a coragem, a resistência, a audácia, a forma apaixonante de ser e estar em campo e fora dele é aqui trazida de volta à vida e lembra-nos como Futre foi uma das primeiras e fundamentais razões para gostarmos de futebol. Futre, diziam uns, era capaz de fintar 10 italianos numa cabine telefónica, mas depois não encontrava a saída; Futre pagava o bilhete, dizemos nós. O golo é, evidentemente, o objetivo máximo do futebol, mas não o termina, não o resume, não o define. Os golos não são pontos. E o futebol também é o grande guarda-redes, a finta, o passe, o génio, a arrancada – até o corte. É uma arte completa e complexa, tem talvez hoje o maior número de sempre de grandes executantes, mas artistas totais, criadores, como Futre, não tem muitos. Nunca teve.
Mas Futre foi também o primeiro momento de desconstrução de um certo complexo de inferioridade nacional. Não era o coitadinho, não procurava desculpas, não se contentava com vitórias morais. Futre abriu-nos a cabeça para percebermos que era possível. A grandeza não tinha ficado toda no acidente de Alcácer-Quibir nem no roubo do Mundial de 66. Não precisávamos de esperar a vinda de um salvador que só aparecia, encarnado em Dom Sebastião ou Eusébio da Silva Ferreira, de tantos em tantos séculos. Também nós podíamos ganhar. Um rapaz do Montijo podia ganhar, andar entre os melhores de cabeça erguida.
Acresce o estilo, claro. O cabelo, a camisola 10, a forma de correr, o jeito de dar aos braços, até a forma de cuspir, caramba, que foram imitadas por um sem-número de herdeiros mais e menos legítimos durante uma década. Futre foi o rapaz do Porsche amarelo, a primeira superstar do futebol nacional, o homem para quem nos virávamos nos momentos de aflição e, claro, em quem se zurzia quando as coisas não corriam bem. Com ele em campo, tudo era possível. Só queríamos que estivesse do nosso lado. E ele esteve de todos os lados – Portugal e Espanha, Porto, Sporting e Benfica – e por todos foi amado e respeitado (coisa curiosa, sobretudo tratando-se de um suposto “enfant terrible” e que, na realidade, sempre nos pareceu, isso sim, um extraordinário profissional).
Aguardamos com expectativa os próximos cinco episódios. Mas este primeiro já soube a obra completa. Despreocupado do compromisso excessivo com uma linha cronológica muito precisa, deambula pelo passado e pelo presente com saudável majestade.
Ainda assim (coisas do coração), precisamos de rever aquele 10 branco sobre fundo vermelho a correr outra vez até cair de joelhos diante da bancada eufórica, depois do golo ao Sporting assistido por João Vieira Pinto. Da cavalgada fulgurante que só termina com um petardo no fundo das redes do Boavista naquela final da Taça. Rever tudo para verificar se as câmaras captaram a verdade tal como registada pelo nosso coração juvenil ou se lhes escapou alguma coisa.
És grande, Paulo. Muy grande. Ou como se diz por cá: obrigado somos nós.