Em 2014, nos Jogos Olímpicos de inverno de Sochi, Yulia Lipnitskaya impressionou o mundo e empurrou a Rússia para o ouro na competição por equipas da patinagem artística. A flexibilidade, o talento e o potencial da atleta de apenas 15 anos motivaram até um abraço e um beijo de Vladimir Putin, na entrega das medalhas, num momento que parecia querer dizer que Lipnitskaya seria o futuro da patinagem artística russa. O sucesso da patinadora colocou o nome da treinadora, Eteri Tutberidze, no mapa. Assim como a queda da patinadora arrasta agora o nome da mesma treinadora, Eteri Tutberidze, pela lama.

Depois de conquistar o mundo em Sochi, a carreira de Yulia Lipnitskaya nunca chegou a explodir. Três anos depois dos Jogos Olímpicos de inverno, deixou a patinagem, revelou que sofria de anorexia e internou-se voluntariamente numa clínica de reabilitação. Após a última competição, a Taça da Rússia, garantiu que tinha arrumado os patins no armário e que já não se sentia “atraída pelo gelo”.

O salto quádruplo, o copo do avô, mais duas substâncias na amostra e a guerra Rússia-EUA: Kamila, a princesa no gelo que continua a derreter

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“A anorexia é uma doença do século XXI e é bastante comum. Infelizmente, nem todos conseguimos lidar com ela. Não a tenho há um ano, dois anos ou três anos. O meu único arrependimento é não ter falado disto mais cedo. Depois da Taça da Rússia, cheguei a casa, pus os patins no armário e não voltei a olhar para eles. Já não me sinto atraída pelo gelo”, explicou a atleta numa entrevista, descrevendo depois o dia a dia na clínica em que estava. “Depois da primeira semana, num dia livre, tiraram-me o telemóvel e claro que isso quebrou toda a minha ligação com o mundo exterior. Só agora é que consigo perceber o que me aconteceu. Fiz isto para pensar sobre aquilo que estava a acontecer à minha vida, foi muito importante”, contou a russa, na altura com apenas 19 anos.

O distúrbio alimentar de Yulia Lipnitskaya, porém, dificilmente foi uma surpresa. Durante os Jogos Olímpicos de inverno de Sochi, quando a russa se tornou a mais nova a ganhar uma medalha de ouro na patinagem artística desde 1936, a treinadora Eteri Tutberidze congratulou-se com o facto de Lipnitskaya conseguir alimentar-se apenas com “nutrientes em pó”. Mas a história da jovem patinadora, ou o fim da história da patinadora, é apenas o início da história de Eteri Tutberidze, a treinadora com toque de Midas que começa a estar cada vez mais no olho do furacão na sequência do caso de Kamila Valieva, a russa de 15 anos que está a ser a figura dos Jogos Olímpicos de inverno de Pequim e que em dezembro testou positivo para uma substância proibida.

President Putin presents Russias national awards at Moscow Kremlin

Eteri Tutberidze foi condecorada por Vladimir Putin em pleno Kremlin

Eteri Tutberidze nasceu em 1974, em Moscovo, a mais nova de cinco filhos de uma engenheira no Ministério da Construção Agrícola e de um funcionário numa fábrica de automóveis. Começou a praticar patinagem artística com apenas quatro anos mas, durante a adolescência e depois de uma fratura na coluna e um pulo de 22 centímetros, fez a transição para a dança no gelo. Emigrou para os Estados Unidos, onde viveu durante seis anos, e passou por Oklahoma City, Cincinnati, Los Angeles e San Antonio. Foi na primeira paragem, porém, que viveu uma das experiências mais marcantes da própria vida.

“Estava só a passear e as pessoas começaram a gritar ‘bomba, bomba’. Estava tudo a correr em direções opostas. Encontrei uma parede, sentei-me, esperei e sobrevivi”, contou a russa sobre o bombardeamento de um edifício federal em Oklahoma, em 1995, que causou 168 vítimas mortais. Até hoje, tem o nome escrito na lista de sobreviventes no memorial que foi construído na cidade. Tutberidze acabou por encontrar trabalho como treinadora, casou com Nikolai Apter, também um antigo patinador tornado instrutor, e teve uma filha em 2003. Diana nasceu em Las Vegas, chegou a querer praticar natação sincronizada, começou a treinar como patinadora artística mas acabou por também fazer a transição para a dança no gelo.

A “Miss Perfeita” russa do gelo tinha pés de barro: cerimónia das medalhas suspensa após teste anti-doping positivo de prodígio de 15 anos

Ainda enquanto criança, a filha de Eteri Tutberidze foi diagnosticada com perda auditiva neurosenssorial de terceiro grau causada por antibióticos em excesso e mal prescritos. Diana chegou a ser tratada pelos melhores especialistas, na Alemanha, mas nunca conseguiu recuperar a audição na totalidade e atualmente recorre à leitura de lábios para comunicar. No início do século XXI, a família decidiu deixar os Estados Unidos e voltar a Moscovo, onde Tutberidze abriu o estúdio Sambo 70 em que ainda dá aulas, escalando a pirâmide da patinagem artística e agudizando um forte sentimento patriótico que sempre a acompanhou.

“O que tento ensinar às minhas alunas, logo a partir dos 13 anos, é que não podem aparecer no treino e começar a queixar-se, a dizer ‘estou cansada, não quero fazer isto agora, fazemos isto amanhã’. Digo-lhes para olharem para o mapa e verem o tamanho da Rússia. Quando são selecionadas e vão para uma competição internacional, vão ter um casaco. Nas costas, diz ‘Rússia’. E se é suposto que sejam o melhor que a Rússia enviou para o resto do mundo ver, não podem sair do gelo com uma má atitude e dizer ‘estou cansada hoje, não me apetece dar o meu melhor e representar o povo russo da forma como é esperado’”, explicou a treinador numa entrevista, justificando em parte o porquê de em 2018 ter sido agraciada com a Ordem de Honra, em pleno Kremlin, por parte de Putin.

Figure Skating - Winter Olympics Day 12

Com Yulia Lipnitskaya, nos Jogos Olímpicos de 2014, o momento em que saltou para a ribalta da patinagem artística internacional

Esta forma de pensar fez com que fosse a responsável por todas as estrelas que foram surgindo na patinagem russa de 2014 para cá. Eteri Tutberidze levou a modalidade a novos patamares e colocou todas as alunas a realizar manobras nunca vistas e dificilmente igualáveis — incluindo os saltos quádruplos que as três patinadoras que tem nos Jogos Olímpicos que estão a decorrer conseguem fazer e que nenhuma outra atleta se atreve sequer a tentar. O método da treinadora, contudo, está a ser colocado em causa: desde a privação de alimentação e hidratação aos treinos demasiado exigentes e recorrentes, passando pelos burnouts, as lesões de longa duração e as reformas extraordinariamente prematuras.

Eteri Tutberidze já revelou que as suas alunas treinam cerca de 12 horas por dia e várias patinadoras confessaram que as refeições são muito limitadas para que se mantenham o mais leves possível para completarem os tais saltos quádruplos e outros elementos complexos. O método da treinadora parece assentar nesse objetivo de manter as patinadoras muito leves e de conseguir que estas comecem a rodar ainda no gelo, antes de saltarem, algo que pode causar lesões muito graves na coluna. Segundo o Washington Post, uma aluna de Tutberidze conseguia fazer saltos quádruplos aos 13 anos e aos 14 já nem sequer podia saltar devido às dores nas costas. Outra, que também dava quatro voltas no ar, acabou a carreira à porta dos Jogos Olímpicos devido a uma lesão na coluna.

Um salto quádruplo para a história: a “Miss Perfeita” de 15 anos que arriscou e conseguiu o impossível nos Jogos Olímpicos

A russa tem o hábito de preferir patinadoras cada vez mais novas, fugindo aos obstáculos que a puberdade pode trazer, e tem nas restrições alimentares uma suas das linhas vermelhas. Alina Zagitova e Evgenia Medvedeva, ouro e prata nos Jogos Olímpicos de inverno de 2018, cumpriam dietas restritivas e nem sequer bebiam água, colocando apenas o líquido na boca para depois o cuspir para terem algum tipo de refresco. Medvedeva, que até era a favorita mas acabou por ser superada pela compatriota, revelou que tinha de se manter o mais “seca” possível e que não poderia ter feito a coreografia se tivesse aumentado de peso. A patinadora deixou a Rússia para treinar no Canadá, onde foi acompanhada por um nutricionista e desenvolveu uma relação mais saudável com a comida, mas voltou para Eteri Tutberidze durante a pandemia. Entretanto, acabou a carreira com 17 anos e uma lesão na coluna que faz com que não consiga virar-se para um dos lados.

Os métodos de Eteri Tutberidze têm sido colocados em causa, principalmente na sequência do caso de Kamila Valieva, por praticamente toda a gente no universo da patinagem artística. “Ver estas miúdas, entre os 12 e os 15 anos, a fazer saltos quádruplos com o dedo no nariz… Claro que levanta muitas questões aos especialistas. Eu não o sou mas falo com muita gente e todos me dizem que ficam muito surpreendidos com o facto de ter acontecido de repente. Antes de Sochi, a Rússia não brilhava na patinagem artística feminina, estavam muito atrás dos outros países. Muito atrás! E agora, de repente, todos os anos aparecem quatro miúdas novas que fazem saltos quádruplos. Não é uma evolução progressiva, é um fenómeno. Claro que as pessoas se interrogam. Especialmente quando todas estas miúdas vêm do mesmo sítio”, defendeu Romain Haguenauer, treinador francês, que não tem grandes dúvidas na hora de acusar Tutberidze.

123rd IOC Session Durban - 2018 Olympics Announcement

Katarina Witt, bicampeã olímpica nos anos 80, tem sido uma das principais críticas da treinadora russa

“Ela é muito dura com as alunas. Não seria possível treinar atletas desta forma no resto da Europa, nos Estados Unidos ou no Canadá. É muito militar, até muito abusivo, de certa forma. Se eu usasse estes métodos na minha academia, em Montreal, já nem era treinador e não tinha o direito de me aproximar de crianças”, acrescentou Haguenauer. Já Katarina Witt, alemã que foi bicampeã olímpica na patinagem artística, responsabilizou a máquina olímpica russa para comentar o caso de Kamila Valieva.

“O que eles lhe fizeram de forma consciente, a ser verdade, não pode ser superado no que toca à falta de humanidade e faz com que o meu coração de atleta chore infinitamente. Estas últimas notícias tocaram-me, honestamente. A Kamila Valieva é uma jovem rapariga, um prodígio, cujas performances altamente difíceis encantaram o mundo. Tem 15 anos, é menor, depende de adultos e não pode ser culpada. Este escândalo é um ponto de viragem dramático para uma carreira jovem e promissora e espero sinceramente que existam pessoas suficientes ao lado dela para a apoiar, proteger e encorajar. Como atletas, seguimos sempre o conselho daqueles em quem confiamos, do treinador e da equipa médica. É uma vergonha e os adultos responsáveis deviam ser banidos do desporto para sempre!”, escreveu Witt, medalha de ouro em Sarajevo 1984 e Calgary 1988, no Facebook.