A proposta artística de Pedro Neves Marques, que a partir de 23 de abril e até 27 novembro vai representar Portugal na 59ª edição da Bienal de Arte de Veneza, “não é só um filme, é toda uma narrativa” de contornos políticos assumidos, onde se incluem “elementos escultóricos e poesia”, explicou o artista nesta quinta-feira em conferência de imprensa no Teatro Thália, em Lisboa.

Descrito como o “primeiro projeto explicitamente queer” na história da participação portuguesa em Veneza, através do qual “questões de representação trans e não-binárias ganham uma visibilidade sem precedentes”, vai levar à transformação de parte do Palácio Franchetti — nas margens do Grande Canal de Veneza — numa nave espacial a caminho de outro planeta. O filme propriamente dito, componente de uma instalação artística de maiores dimensões, intitula-se Vampires in Space e surge em três ecrãs espalhados pelo pavilhão.

“É extremamente narrativo, como aliás muito do meu trabalho”, pormenorizou o artista. “Tem uma história, não tendo um princípio e um fim, tanto pela própria vivência do que é o espaço de uma exposição como porque conceptualmente me é interessante assim. A ideia subjacente, em termos fictícios, é uma viagem no espaço entre dois planetas gémeos, seria a Terra e um exoplaneta similar. O que me interessa é a viagem, não o ponto de partida e o destino. Interessa-me o que acontece entre. Esse ‘entre’ fala já muito das questões da identidade de género e outras explicitamente políticas.”

Na presença dos curadores do projeto, João Mourão e Luís Silva, e também da ministra da Cultura e do diretor-geral das Artes, Pedro Neves Marques disse esperar que Vampires in Space seja recebido como uma proposta “critica e sociologicamente incisiva”, que ao mesmo tempo se “abra à emoção do espectador”. “É muito importante que estes dois elementos consigam conviver e não se afastem”.

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Luís Silva, Pedro Neves Marques e João Mourão

Ministra: “Reivindicações identitárias estão na ordem do dia”

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, leu um discurso escrito e fez questão de sublinhar que a presença de Portugal naquele que é considerado o certame mais relevante da arte contemporânea mundial funciona como “um significante passaporte para uma efetiva promoção da arte contemporânea portuguesa”.

A governante defendeu que “as reivindicações identitárias estão na ordem do dia” e que o projeto de Pedro Neves Marques está “amplamente comprometido com esta atualidade questionadora, convocando temáticas como a identidade de género, a sexualidade, as modalidades de família não nuclear e o impacto da biotecnologia no processo reprodutivo”.

Considerou também “fundamental” que os “organismos da cultura continuem a primar por uma atitude de abertura democrática, que acolha perspetivas e práticas artísticas diversificadas, plurais, heterogéneas”, para que o público aceda “à maior multiplicidade possível de visões do mundo”.

O curador João Mourão pôs em destaque o “programa público” que acompanha a presença em Veneza e que se refletirá em cinco iniciativas paralelas em Portugal, sob a responsabilidade de Filipa Ramos, atual diretora de artes visuais na Câmara do Porto. As cinco iniciativas terão lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas (que João Mourão dirige em São Miguel), no Centro Internacional das Artes José de Guimarães e no Cinema Batalha. O mesmo responsável indicou que o filme de Pedro Neves Maques deverá ser exibido no Centro de Arte Moderna e Contemporânea da Gulbenkian provavelmente em fins de 2023 ou início de 2024.

“Os vampiros servem a Pedro  para traçar uma narrativa sobre preocupações políticas, afetivas, emocionais”, segundo o curador Luís Silva

O investimento público na representação oficial portuguesa na Bienal de Arte de Veneza foi este ano de 346 mil euros, através da Direção-Geral das Artes (DGArtes), referiu João Mourão — além dos cerca de 300 mil euros anuais que Portugal paga a partir deste ano pelo arrendamento do Palácio Franchetti, que assim se torna pavilhão oficial. Desta vez, com a intervenção do atelier do arquiteto Diogo Passarinho.

Através de patrocínios, o projeto angariou mais cerca de 100 mil euros. A Fundação EDP é mecenas principal de Vampires in Space e os apoios adicionais vieram da Fundação Carmona e Costa, Fundação PLMJ e Fundación Botín.

Prémio na Ucrânia

Segundo o curador Luís Silva, a escolha de Pedro Neves Marques esteve na mente da equipa curatorial desde o primeiro minuto. “É uma artista com quem temos vindo a desenvolver um trabalho continuado, com imensos diálogos produtivos, sobre quem escrevemos várias vezes”, explicou.

“A ideia dos vampiros no espaço entroncava numa série de preocupações de ambos, curadores e artista. Os vampiros são uma categoria que todos conseguimos identificar, sobre a qual possuímos um conjunto de expectativas. Ao longo do tempo, os vampiros têm servido para pensar uma série de preocupações e neste caso servem a Pedro  para traçar uma narrativa sobre preocupações políticas, afetivas, emocionais”, disse Luís Silva.

Nascido em Lisboa em 1984, Pedro Neves Marques descreve-se como pessoa não-binária — daí que tenha sido tratado como “a artista”, pelos particpantes na apresentação. Nos últimos anos tem trabalhado em torno das artes visuais e da escrita poética e ensaística. “Tenho uma prática bastante prolífica”, resumiu. Depois de estudar belas-artes em Lisboa, radicou-se em Londres para fazer um mestrado na Goldsmiths College e a seguir passou algum tempo no Brasil. Durante oito anos, até 2019, esteve em Nova Iorque. Está em Portugal desde o início da pandemia.

Recentemente recebeu o prémio mais importante das curtas-metragens do Festival de Roterdão, com Tornar-se Homem na Idade Média, e ainda o prémio Future Generation Art, em Kiev. Por isso, nesta quinta-feira fez questão de se referir à guerra na Ucrânia. “Tem sido bastante estranho ver o que está a acontecer, tendo estado lá em outubro com uma certa comunidade local.”

Artista português Pedro Neves Marques finalista de prémio para futura geração

Caso Grada Kilomba: “Não está tudo bem, porque houve vários comentários críticos”

Aos jornalistas, no fim da apresentação, a ministra da Cultura falou da polémica que envolveu a seleção do projeto deste ano, através de concurso fechado promovido pela DGArtes (como acontece desde 2018). O processo deveria ter começado até junho do ano passado, mas só teve início em 19 de agosto, com aviso publicado em Diário da República.

O resultado saiu a 17 de novembro, mas Bruno Leitão, um dos curadores convidados a apresentar uma proposta a concurso, que consistia num projeto da artista de origem africana Grada Kilomba, recorreu da decisão várias vezes, alegando “incoerências e irregularidades graves nos critérios de avaliação, bem como violações explícitas dos deveres do júri, que são definidos por lei”.

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, intervem durante a conferência de imprensa para a apresentação do Pavilhão de Portugal na Bienal de Veneza 2022, em Lisboa, 10 de março de 2022. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Titular da pasta da Cultura sublinhou que “a criação artística não é dirigida pelo Estado”

Ana Cristina Cachola, Giulia Lamoni, Sofia Isidoro e Nuno Crespo foram os membros do júri e as queixas visavam sobretudo este último. Houve até artigos de opinião na imprensa e nas redes sociais de pessoas próxima do curador a sugerirem ter havido um comportamento racista por parte daquele jurado.

O caso terminaria em meados de fevereiro, quando o Ministério da Cultura, a quem Bruno Leitão tinha recorrido no quadro de um recurso hierárquico, aprovou um parecer jurídico que mantinha a decisão inicial do júri, dando como vencedora a dupla de curadores que apresentou o artista Pedro Neves Marques.

Governo mantém decisão de concurso para representação portuguesa na Bienal de Veneza

“A escolha da equipa artística que representa Portugal não é mesmo decisão da ministra da Cultura”, disse Graça Fonseca nesta quinta-feira. “É uma garantia que me orgulho em transmitir: é uma escolha de um júri independente, com o qual nunca falei ao longo deste tempo todo. A criação artística não é dirigida pelo Estado”, afirmou. “O papel que a ministra tem, neste caso, é jurídico. Houve um recurso, a lei permite.”

Questionada sobre se, de futuro, a composição do júri deste procedimento da DGArtes pode ser mais representativa da diversidade de características étnicas e culturais presentes na sociedade portuguesa — como sugeriram os subscritores de uma carta aberta de apoio a Bruno Leitão, publicada em dezembro — a governante respondeu que a diversidade é bem-vinda.

“É um aspeto que a DGartes avaliará, proporá o que tiver a propor e a tutela decidirá”, apontou. “Pela primeira vez nos concursos de apoio às artes em Portugal existe uma discriminação positiva nas equipas que representem diversidade étnico-racial e igualdade [de género]. É um princípio estruturante que a DGArtes e a tutela valorizam através de ações concretas”, acrescentou Graça Fonseca.

Sobre a mesma controvérsia, Américo Rodrigues, diretor-geral das Artes, igualmente presente no Teatro Thália, declarou que o modelo do concurso “tem méritos de transparência” e permite a “participação de vários especialistas”, logo, “tem todas as condições para funcionar, é democrático”.

Sem assumir por inteiro problemas quanto ao método e aos procedimentos, Américo Rodrigues acabou por reconhecer que “não está tudo bem, porque houve vários comentários críticos, que vão ser avaliados e apreciados”. Mas não indicou quando. As perguntas dos jornalistas foram abruptamente interrompidas por um assessor de imprensa do Ministério da Cultura.

Minutos antes destas declarações, ao discursar na apresentação, o diretor-geral das Artes já tinha abordado o tema de forma indireta. “A DGArtes tem a missão de organizar regulamente a representação portuguesa na Bienal de Veneza. Fá-lo com dedicação e rigor, no âmbito do serviço público que presta de apoio às artes e segundo os procedimentos em vigor”, dissera.