Arrependo-me de não ser organizado. Perdi o rasto a muitos dos textos que escrevi — não estão divididos por pastas e por anos e por temas, num disco externo com o meu nome — e com eles vão as suas memórias. Gostava de lembrar-me do dia em que conheci o Jorge, mas a verdade é que não me recordo, tenho uma ideia e isso não é suficiente. Apesar de não ter disco externo, uma vez na internet, para sempre na internet. Foi assim que recuperei a memória de um dia, em tempos de jornalista, que passei em reportagem no Teatro da Politécnica, os Artistas Unidos faziam 20 anos e fui lá ver como era o quotidiano da companhia.
Era 2015. Mesmo que não tenha sido este o dia em conheci o Jorge, sei que foi neste dia que nos olhámos mais seriamente, que nos começámos a demorar mais nas conversas. Foi aliás nesse dia que o Jorge começou a ensinar-me coisas. Falou-me do passado daquele edifício, da sua importância cultural no pré-25 de Abril, nas gentes que passavam pela então Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências de Lisboa. Estavam a ensaiar “Os Jogadores”, peça do catalão Pau Miró, num espectáculo que parecia ter sido feito propositadamente para aquela ocasião de aniversário: António Simão, João Meireles, Pedro Carraca (todos sócios-fundadores dos Artistas Unidos) e Américo Silva (um ator que desde cedo é parte da história da companhia) interpretavam quatro personagens a quem a juventude tinha fugido, quatro personagens que se recusavam a envelhecer — ou que, pelo menos, tinham bastantes dificuldades em lidar com a ideia.
Jorge Silva Melo (1948-2022): o renovador que, passeando, mudou o teatro e a cultura portuguesa
Os Artistas Unidos — e tantas outras estruturas — estavam também a passar uma daquelas fases em que o fim parecia próximo. Os anos da Troika e a atividade cultural como coisa acessória deixaram o Jorge apreensivo. Talvez não fosse esse vislumbre do fim que naquela altura o angustiava, mas o facto de ter de se cingir, em grande parte, à pequena sala do Teatro da Politécnica. 70 lugares, uma cena onde não cabiam muitos atores, as transições de cena evaporadas, o blackout como solução inevitável.
Tenho a ideia de que o Jorge também gostava dessa dimensão mais reduzida dos Artistas Unidos, que ao longo de tantos anos mostraram e continuam a mostrar algum do repertório mais recente escrito para cena por esse mundo fora, trazer textos que nunca tinham sido feitos, nem editados, essa dimensão de explorar as boas relações que o Jorge tinha com bastantes dramaturgos e criadores que estavam a escrever e a criar agora, trazê-los a Portugal, organizar sessões de leitura. No fundo, confrontar o público português com o que se ia fazendo de bom nesses corredores artísticos internacionais. Acho que o Jorge tinha muito prazer nesse gesto.
E, claro, a importância fulcral dos “Livrinhos de Teatro” (em parceria com a Cotovia; entretanto com o fim da Cotovia a parceria foi abraçada pela Snob) que tantos autores nos ofereceram, me ofereceram. Sem os “Livrinhos de Teatro” não teria passado tanto tempo com Heiner Müller — e como isso foi decisivo —, com Rodrigo García, Davide Carnevali, Antonio Tarantino, Dimitris Dimitriádis, Claudio Tolcachir, Tennessee Williams. Como é que seríamos sem os “Livrinhos de Teatro”? Como é que eu seria?
Aconteceu algumas vezes — depois de 2015 escrevi cada vez mais sobre teatro, ou seja, passei cada vez mais tempo nos Artistas Unidos — umas lições de História e Teatro junto ao arvoredo diante do Teatro da Politécnica. Não sei explicar bem o motivo, mas ali, encostado ao muro de pedra, aquele parecia um sítio perfeito para fumar. Mais umas conversas sobre vontades e próximos capítulos. Entre cigarros, o Jorge queixava-se dos turistas que insistentemente confundiam o Teatro da Politécnica com uma qualquer sala ao serviço do Jardim Botânico; queixava-se da velhice, da falta de audição cada vez mais evidente. Para mim, foram sempre conversas ricas. Para mim e para outros colegas jornalistas, que invariavelmente, aquando de um ensaio de imprensa dos Artistas Unidos, nos juntávamos por ali, durante uns breves minutos, a comentar o que no mundo se passava e até os despedimentos em massa nos grupos de comunicação. O Jorge sabia sempre de tudo.
A confiança foi crescendo e houve um dia que pedi ao Jorge para fazer uma reportagem longa num processo dos Artistas Unidos, com “A Noite da Iguana”, de Tennessee Williams. Disse-lhe que gostava de acompanhar o processo de construção da personagem do Nuno Lopes — um dos atores mais extraordinários que já vi trabalhar. E o Jorge acedeu prontamente. Não só acedeu como me acolheu como se fosse parte da equipa, como se também eu estivesse ali, durante aqueles dois meses e meio, a contribuir para levantar aquele espectáculo. O resultado desse trabalho foi publicado neste jornal e julgo ter sido um importante documento sobre o que é o trabalho de um intérprete visto por dentro. Não esqueço a assertividade com que o Jorge dirigia os seus atores, muitas vezes misturado com um humor avassalador. Não sei o que é ser ator, não sei o que é ser dirigido, o que sei é que quase sempre os intérpretes acabavam a fazer o que ele queria, como ele queria. O jogo. Para o Jorge era sempre o jogo. Uma vez disse-me: “O meu sonho é ter atores a quem não tenho de dizer nada, ficava aqui sentadinho…” (jornal i; 17/09/2015)
A verdade é que sem a simpatia e amabilidade do Jorge eu não estaria hoje onde estou. E por isso devo-lhe um grande agradecimento. Nem eu, nem o teatro português, para o qual foi uma das peças fundamentais, não só nos Artistas Unidos, como no tempo da fundação da Cornucópia e nos anos que se antecederam e que se seguiram. Recordo-me de como, a partir de “A Noite da Iguana”, sempre que o Jorge me via cumprimentava-me assim: “Então senhor jornalista, como vai a vida?”. Com o passar do tempo, e com o meu progressivo desencanto com o jornalismo — mais justo talvez seja dizer com o meu progressivo fascínio pelo teatro e pelo desejo de trabalhar o teatro —, começou a dizer: “Então senhor jornalista, tem andado desaparecido.” Pois tenho. E se desapareci foi também porque o acompanhamento desse processo e as tardes que passei no escuro no Teatro da Politécnica me precipitaram na vontade de escrever como alguns daqueles autores. Ou, pelo menos, tentar ver de longe os seus calcanhares. Ao contrário de mim, o Jorge nunca andará desaparecido.
Miguel Branco é dramaturgo