Isso é um dos seus principais méritos”, disse Luis Miguel Cintra à agência Lusa, a propósito de Jorge Silva Melo, o encenador, ator, cineasta, dramaturgo, tradutor, ensaísta, que morreu na segunda-feira à noite, e com quem fundou o Teatro da Cornucópia, em 1973. Ele “sempre teve a vocação de ajudar os outros […]. Ele tinha vocação de professor”.

“O Jorge foi uma pessoa muito importante para mim, no princípio da minha vida artística”, frisou Luis Miguel Cintra à agência Lusa, recordando terem sido colegas de liceu e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde, juntamente com “muitas outras pessoas, se gerou um grupo muito criativo, que tinha um projeto de criatividade muito grande e de intervenção na sociedade”.

Foi na Faculdade de Letras que Luís Miguel Cintra se estreou como ator, numa peça em que Jorge Silva Melo representava um dos papéis principais, contracenando com Eduarda Dionísio, professora e escritora, e “várias outras pessoas”, recordou.

“No fundo, entrei na carreira e ousei fazer isso, muito empurrado pelo Jorge, e o Jorge teve sempre esse papel, no princípio muito importante para mim, mas depois teve sempre esse papel em relação a muitas outras pessoas — e isso as pessoas não imaginam”, sublinhou.

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Para Luis Miguel Cintra, Jorge Silva Melo foi também “uma das pessoas mais importantes no chamado Cinema Novo português”, acrescentou, sublinhando de novo quanto da ação do encenador e cineasta permanece desconhecida.

“As pessoas não sabem isso”. E recordou que Silva Melo foi assistente de António-Pedro Vasconcelos, na primeira longa-metragem deste, “Perdido por cem”, e de Alberto Seixas Santos, em “Brandos costumes”.

“Se não fosse o Jorge, o João César Monteiro não tinha feito ‘Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço'”, afirmou ainda, referindo-se à curta-metragem de ficção de 1971, obra inicial do realizador de “Recordações da Casa Amarela”.

Luis Miguel Cintra disse ainda que deve a Jorge Silva Melo “ter sido empurrado e assinalado como ator possível de cinema”.

“Fui parar ao [cinema de] Paulo Rocha provavelmente também pelo Jorge, que estava muito metido dentro dos meios do cinema”, frisou.

Luís Miguel Cintra lembrou ainda o tempo em que ambos estudaram em Inglaterra, antes do 25 de Abril de 1974 — Cintra estudava teatro em Bristol, Silva Melo, cinema, em Londres –, mantendo encontros numa estada “quase conjunta”, nesse país, até Silva Melo ter regressado a Lisboa antes de si.

Jorge Silva Melo teve então contacto com grupos de teatro independente, através da atriz Glicínia Quartin, e um dia escreveu a Luis Miguel Cintra dizendo-lhe que “havia condições para fazer teatro em Portugal”.

Luis Miguel Cintra acabou por regressar e juntos fundaram “A Cornucópia”, em 1973, a um ano da queda da ditadura.

Desde então, e até aos “primeiros anos de 1980”, o Teatro da Cornucópia foi um “projeto completamente empurrado por ele e por mim, a meias,” a ponto de assinarem as encenações “em conjunto”, lembrou Luis Miguel Cintra à agência Lusa.

“Aprendíamos muito um com o outro, no fundo, sempre com um projeto de intervenção na sociedade”, e com o objetivo “de fazermos um teatro que fazia as pessoas pensarem, que queríamos que fosse novo, diferente”. “E isso foi muito importante”, considerou.

A certa altura ambos começaram a sentir “o que muitas vezes acontece quando duas personalidades fortes tentam estar à frente da mesma coisa”, e começou a haver choques entre os dois.

“Ele, de certa maneira desistiu, achou que era melhor ir fazer um estágio em Berlim e foi com a Cristina Reis, que entretanto se tinha juntado a nós como cenógrafa, e eu fiquei sozinho à frente da companhia, mas achei que devia continuar”, contou Luis MIguel Cintra.

Depois, os caminhos “dividiram-se”. Silva Melo fez teatro fora e Luis Miguel Cinbtra ficou na Cornucópia com o conjunto de atores que quiseram ficar. A partir daí, foram seguindo “caminhos separados”.

“Mas gosto muito de pensar que conseguimos os dois, ele com os Artistas Unidos, e eu continuando com ‘A Cornucópia’, completarmo-nos um ao outro, ou seja, não sobrepor os repertórios — ele mais dedicado a descobrir peças novas, e a representar um repertório contemporâneo, e eu mais virado para o repertório clássico”, sublinhou.

Um caminho que, de alguma maneira, ficara definido, mas que fez coim que as duas companhias tenham “contribuído com alguma coisa para mudar o teatro português”.

“E o Jorge sempre teve muita vocação de ajudar os outros e empurrar os outros. Ele tinha vocação para professor. Ele dizia que a verdadeira vocação dele era ser jornalista, mas eu acho que foi, sobretudo, professor”, conclui Luis Miguel Cintra.

Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo receberam, em 2021, em conjunto, doutoramentos honoris causa da Universidade de Lisboa.