O que faz de um filme um candidato aos Óscares? Ou, como se diz na gíria, um “Oscar bait”, um isco para ser mordido por esse espadarte à deriva que é a Academia das Artes e Ciências Cinematográficas? Há várias respostas potencialmente corretas a esta pergunta, mas no caso de “CODA” (nomeado para Melhor Filme, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Ator Secundário) parece ser ter simplesmente ter uma história bonita e descomplicada para contar. É pouco? É muito. É tudo, diria.
Baseado no êxito francês de 2014 “La Famille Bélier”, “CODA” é, na guerra dos gigantes do streaming, a primeira aposta da Apple TV+ a conseguir nomeações ao mais reputado prémio da indústria (sim, continua a ser, mesmo que todos os anos menos e menos pessoas acompanhem a cerimónia ou até vejam os nomeados). Tiremos já do caminho o medonho título da tradução para português, para nunca mais o usarmos no resto do artigo: alguém, quiçá a recuperar de uma lobotomia feita num snack bar falido no Cacém, resolveu chamar-lhe “No Ritmo Do Coração”. O que, infelizmente, soa a uma comédia romântica com a Jennifer Lopez e o Adam Sandler sobre uma professora de salsa e um contabilista em fuga da Mafia que se apaixonam. Não é o caso.
[o trailer de “CODA”:]
O CODA do título original remete para a sigla de “Children Of Deaf Adult” (em português, filhos de adultos surdos). O filme relata a história de Ruby, a única com audição numa família de pessoas surdas. Os Rossi vivem de uma embarcação piscatória que se faz ao mar numa cidade costeira em Massachusetts e dependem repetidamente da mais nova da família. Ao ter a oportunidade de cumprir o seu sonho de ser cantora (um talento que, por motivos óbvios, pais e irmão desconhecem) e de ir para o Berklee College of Music, Ruby fica dividida entre permanecer com os seus ou seguir a sua paixão.
“CODA” não tem uma narrativa surpreendente. Não é esse o seu objetivo. O filme ambiciona (e concretiza) apenas contar uma história emotiva e, a espaços, divertida, com recurso a um bom guião e a ótimos atores que servem personagens com textura. A picardia entre intervenientes faz lembrar o humor que servia de supercola à família de “Little Miss Sunshine”. A matriarca é desempenhada por Marlee Matlin, a primeira (e até hoje única) pessoa surda a ganhar um Óscar. Foi no já longínquo ano de 1987, por “Filhos De Um Deus Menor”. Aqui, comprova o seu talento natural para a comédia. Já o pai (Troy Kotsur) está, com toda a justiça, nomeado este ano. Esta é, aliás, uma das grandes diferenças em relação ao filme gaulês que serviu de inspiração: os papeis são, efetivamente, desempenhados por atores surdos. Curiosamente, já no ano passado tinha sido nomeado um filme com esta característica. Foi “The Sound Of Metal”, da Amazon, sobre um baterista que começa a perder a audição.
Um dos méritos de “CODA” é tratar as pessoas surdas como… bom, como pessoas. Com vida sexual, sentido de humor e sangue na guelra. O filme, apesar de emocional, escapa-se ao choramingas e ao condescendente (salvo um ou outro pé em gelo fino). Mas faz também um bom trabalho ao perceber o dilema de Ruby, entalada entre duas realidades, a ter constantemente de fazer de porta giratória entre uma e outra.
Conforme a data da cerimónia se aproxima, “CODA” vai recolhendo inesperado favoritismo junto de alguma crítica e até de casas de apostas (que o colocam num honroso terceiro lugar da lista de probabilidades para Melhor Filme, apesar de bem longe de “O Poder do Cão”). Há até quem recorde o caso de “Grand Hotel”, filme de 1932 que ganhou apenas um Óscar, mas foi logo o principal da noite. Não será caso para tanto com “CODA”, mas que bom é ver um filme simples e honesto num ano que se adivinha sem muita história.