Simone de Oliveira é, ao mesmo tempo, muito portuguesa e nada portuguesa. Porque ser português é, por norma, sê-lo apenas moderadamente, discretamente, contidamente. Simone não. Simone é muito. Sempre foi. Portuguesa rara, que leva os outros todos atrás (e tudo à frente). E é assim, também de forma porventura pouco portuguesa, que escolhe sair de cena: “Termino a minha carreira nos termos que eu quis e que eu quero”, diz, perante a sala lotada do Coliseu dos Recreios, que aplaude de pé por uma vez qualquer a que já perdemos a conta.
A sala que, ao mesmo tempo, talvez não perceba bem a regra do jogo e insista num longo aplauso, pedindo um encore a que Simone acaba por aceder apenas para repetir a mesma “Desfolhada” que acabara de cantar. Não se arrasta, não se queixa, não se chora – pelo contrário. Agradece todos os privilégios da vida que teve; aplaude por antecipação quem vier depois. Os deuses a abençoem: 65 anos de vida pública depois, ainda temos muito a aprender com ela.
Uma hora e muito pouco de concerto – não mais. “Sim, Sou eu… Simone”, o espectáculo de adeus aos palcos anunciado há pouco tempo e para o qual os bilhetes rapidamente voaram, tem um cartaz que logo nos arranca um sorriso: uma fotografia de Simone a fumar. Aos 84 anos, depois de vencer um cancro, depois de ter perdido e recuperado a voz – ou ganhado outra, como ela diz. Deliciosamente nada português. E caso a provocação tenha escapado a alguém, quando às 21h53 as luzes se apagam e uma voz recorda que é obrigatória a máscara e proibido fumar, Simone entra em cena escolhendo para primeiros versos exatos:
“Se eu quiser fumar, eu fumo
Se eu quiser beber, eu bebo”
Seguir-se-ão mais 11 temas tão criteriosamente escolhidos como aquele, duas leituras de poemas e alguns interlúdios previamente escritos por Fátima Bernardo para o espectáculo com direção musical de Nuno Feist e encenação do irmão Henrique Feist.
Diante de uma plateia onde se contam, à vontade, três gerações, Simone passa em revista a carreira sem sentimentalismos e com novos arranjos. Canta “Vida”, “Esta Palavra Saudade”, “Pingos de Chuva”, “No teu Poema”, o épico “De Degrau em Degrau”, à época lançado como discreto lado B de “Sol de Inverno”, tesouro da canção nacional que, por sua vez, fica aqui entregue a uma arrepiante interpretação de Edmundo Inácio, finalista do último “The Voice”. “Eu sou sincera”, comenta Simone depois, rindo, “se eu tivesse cantado assim, não tinha ficado em 12.º lugar.”
As reinterpretações dos convidados são, de resto, dos pontos mais felizes de “Sim, Sou eu… Simone”. Um surpreendente DJ Kamala a dar a volta à “Desfolhada” de um camarote do Coliseu, Carlão num dueto fenomenal com a dona da festa e ligado à corrente em “Não É Verdade”, e ainda uma série de convidados-surpresa que saltam da plateia para fazer do improvável “Apenas o meu Povo”, tema com que Simone regressou ao Festival da Canção em 1973 (e a vez em que não ganhou), o momento mais épico da noite.
“Faz hoje precisamente 53 anos que cantei em Madrid esta canção”, diz, partilhando a coincidência de que só tomara conhecimento horas antes. Seguiu-se a inevitável “Desfolhada”, na já citada dose dupla, sob pano de fundo vermelho, como só podia ser, antes da cortina descer, em jeito clássico, e Simone sair, com a altivez real que se lhe reconhece. Antes, já agradecera a Ary dos Santos, a Nuno Nazareth Fernandes, a David Mourão-Ferreira (de quem leu o maravilhoso “E Por Vezes”, minutos depois de fazer o mesmo com Pessoa, “Não Sei Quantas Almas Tenho”).
Agradecera aos seus poetas e compositores porque não escreve. E é um facto. Mas só agora nos damos conta de algo tão óbvio como só terem as canções de Simone muito provavelmente sido escritas por haver Simone. Inspiradas por ela ou, simplesmente, à espera dela porque outra pessoa não as poderia cantar. Sim. Ninguém nos tira da cabeça. Simone foi cúmplice. Autora moral destes sanguíneos poemas-canção.
O espectáculo termina às 23. Cedo. Simone quis sair à hora certa, à hora que quis. Cá fora, ruas e esplanadas de Lisboa estão cheias de vida outra vez. Há um sabor a coisas prestes a começar. Versos em branco à espera do futuro.