O mito romântico diz-nos que é preciso sofrer para criar, que a sofrência atribui algum tipo de verdade ou autenticidade à arte que dela nasce. Esta perspetiva – que é, para todos os efeitos, impossível de provar – não poupa os artistas que se aburguesam um pouco: quando eles deixam as drogas, engordam, compram uma casa com piscina ou começam a ter uma perspetiva menos desesperada sobre a vida, são automaticamente riscados dos artistas a ter em conta.

Na ausência de estatísticas que validem ou falsifiquem o pressuposto de que a arte sabe melhor se banhada em desgraça, não nos resta senão munir-nos dos exemplos que mais nos tocam: qual o melhor Nick Cave, o junkie aos berros, o que descobre a canção clássica mas ainda vivia num quarto minúsculo na zona mais degrada de Berlim, ou este, que aceita os seus fantasmas? Qual o melhor Bonnie Prince Billy, os melhores National?

A resposta varia consoante a cabeça, o par de ouvidos, o estado de infiltração das paredes internas de cada coração, e o artista. Gosto muito do Bill Callahan mais sereno, mas nunca os Silver Jews foram tão belos como na desgraça de Bright Flight; Julia Jacklin é ótima quando rocka, mas Sharon Van Etten dá-me cabo da vida quando está a rasgar as vestes, enquanto berra, destruída, louca de amor e desespero. E é Sharon Van Etten que nos traz aqui hoje – a este lugar cheio de flores e espinhos, grandes refrões e facas na alma, que é We’ve Been Going About This All Wrong.

[“Mistakes”:]

Estávamos há muito à espera de um disco como We’ve Been Going About This All Wrong – estamos sempre demasiado tempo à espera de novo disco de Sharon, mesmo quando só passam dois anos entre cada um: ele tornou-se-nos íntima, aquela prima preferida com quem crescemos e compreende as nossas dores, a pessoa que nos fez crescer ao partilhar as suas angústias, mas que vive longe e já raras vezes a vemos. Só que sempre que estamos juntos é como se a última vez que nos vimos tivesse sido ontem. É a isso que We’ve Been Going About This All Wrong sabe: ao regresso da nossa prima preferida.

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Por mais que ela não queira – e desconfio que não quer – a aura de Van Etten, o seu legado, ficou definido com dois discos: Tramp, de 2012, e Are We There, de 2014 – respetivamente os terceiro e quarto discos que a americana editou. Mas logo à primeira, em Because I Was In Love, de 2009, Van Etten já criava canções como exorcismos, refrões como feridas que rebentam. No ano seguinte, com Epic, aprimorou a sua escrita clássica (guitarra, piano e um vozeirão que sobe nos momentos certos, eriçando-nos os pelos, conduzindo-nos ao arrepio) e há quem defenda que Epic deve ser colocado lado a lado com Tramp e Are We There (mas tenho uma certa renitência em fazê-lo).

Tramp e Are We There são dos pontos mais altos que a humanidade conheceu da canção enquanto expiação, hipótese única do artista ascender acima dos seus erros, da sua menoridade humana, vingar-se em beleza, ascender. Em ambos os discos os temas são semelhantes: o amor que falha, o amor tóxico ou abusivo, a tendência para se deixar ficar em relações desequilibradas, a procura de casa, a procura de amor, a procura de identidade, a procura de chão.

[“Porta”:]

É difícil encontrar o adjetivo mais preciso para qualificar cada canção de Tramp e Are We There, mas julgo que “tremendo(a)” é uma boa opção. Porque são canções que provocam um abalo quando atingem o seu zénite; em que a voz se atira de jorro contra os nossos ouvidos como um defesa de rugby a placar o avançado com bola. São canções como montanhas que desabam em cima de nós, e a nós cabe-nos sobrevivê-las e à sua intensidade única, cabe-nos recompor-nos depois de cada assalto.

Uma lista das canções tremendas de Tramp e Are We There seria, basicamente, a própria lista de canções que compõem Tramp e Are We There; este último, por exemplo, é uma sucessão de golpes que nos atordoam, como se estivéssemos face a um boxeur prodigioso, um falso lento com um magnífico jogo de pés, que parece mostrar-nos o flanco antes de nos aplicar murros sucessivos: a abertura com o dedilhado tenso de guitarra de “Afraid of nothing”, e as cordas em fundo antes de começarem a rodopiar – isto bastaria para anunciar estarmos perante alguém no topo do seu jogo. É aqui, neste exato instante, que Van Etten aperfeiçoa a sua técnica de escrever canções em ascensão, com os refrões a culminarem no topo, a voz dela lá em cima, toda arrepio.

“Afraid of nothing”, “Taking chances”, “Your love is killing me”: quantos discos começam assim, quantos discos já nos derrubaram, já nos derrearam à terceira canção? O órgão de “Your love is killing me” parece, logo de entrada, avisar-nos que o aí vem vai ser duro, uma espécie de bandeira vermelha a assinalar mar encrespado – e depois, aquele refrão com a bateria numa espécie de marcha militar e a voz a atirar “I let you walk over me”, repleto de desespero, de repulsa por si mesma.

[“Used to It”:]

E quantos discos fazem, a esta santíssima trindade, suceder uma peça de joalharia imaculada como “Our love”? E quantos discos têm a lata de logo a seguir atirar com uma “Tarifa”, arrastada, sensualíssima, aquela voz de anjo que perdeu uma asa mas mesmo assim insiste em subir as escadas de Jacó?

Jordan e Kobe no topo do jogo eram implacáveis, podiam ter cinco homens em cima que eles desencantavam ainda mais um lançamento de costas, a cair, com a mão esquerda, no último segundo, quando já ninguém acreditava – e chegávamos ao fim de Are We There e Sharon (porra, mulher) ainda sacava uma “Every time the sun comes up” que, 61 milhões de escutas depois, continua a dar cabo de nós a cada nova audição e parece ser uma forma de dizer que podiam parti-la toda na vida que nunca mas nunca ela iria fazer uma canção que nos deixasse indiferente.

O problema de Sharon Van Etten é que a fasquia emocional que ela colocou nessa sequência de dois ou três discos (conforme incluamos ou não Epic na galeria dos álbuns perfeitos) é tão elevada que não era possível sustentar. A equipa que lança 50% da linha de 3 pontos um jogo inteiro a dada altura vai começar a falhar – e o escritor de canções que vive de ir buscar as dores ao fundo do poço descobre que um dia o poço seca.

Que se faz quando já não se sente a mesma angústia, quando se aprecia a vida, quando a tipa que só gostava de si mesma quando escrevia começa mesmo a gostar de si mesma mesmo quando não escreve?

Faz-se Remind Me Tomorrow – a tentativa de Sharon de fazer um disco positivo, em que as guitarras e os pianos deprimidos eram trocados por sintetizadores e um certo apelo à dança. Soava estranhamente como um disco de Springsteen com sintetizadores – o épico positivo, a luta da pessoa média pela redenção e pela salvação, a nostalgia da juventude e da inocência – mas, não sendo propriamente um disco falhado (tinha pelo menos um par de tremendas canções, como “Seventeen” e a estupenda “Comeback kid”) era um disco ao qual faltava uma identidade sonora e emocional definida.

[ouça “We’ve Been Going About This All Wrong” na íntegra através do Spotify:]

We’ve Been Going About This All Wrong não sofre desse problema – musicalmente aproxima-se de Tramp e Are We There e logo à quarta canção (“Anything”) oferece-nos um clássico instantâneo de Sharon, um clássico que podia estar nos discos supra-mencionados. Duas canções depois e deparamo-nos de novo com uma canção enorme: “Headspace” abre com aquela dose de ruído que Sharon descobriu em Remind Me Tomorrow e de repente vira para um refrão angustiado (“Baby, don’t turn your back to me”) que é vintage Sharon das preocupações emocionais.

Sharon não teve de optar entre o seu som inicial e o ruído e sintetizadores e maior produção de Remind Me Tomorrow – ambos coexistem com admiráveis resultados: “I’ll try” lembra um pouco o disco anterior, e anda despercebida (como um contabilista numa orgia) até ao refrão, que – por entre sintetizadores – abre-se à luz e a uma prece só possível em quem já viveu alguma coisa: “I’ll try”, clama Sharon, a voz a trepar, em voltinhas. Tão simples e tão eficaz: “I’ll try”. Quem nunca disse isto?

Os discos de Sharon Van Etten já não são mais puro desespero nem tentativa de encontrar uma identidade: são discos de mãe que sabe que os problemas nunca acabam, mas entre cada um deles, por breves períodos, no abraço do filho, no beijo do companheiro, com os amigos ao lado, há uma estranha, difusa e fugidia sensação a que os humanos, à falta de melhor palavra chamaram felicidade.

Muita gente cria beleza a partir da desgraça; mas é preciso ser-se brilhante para a fazer nascer da felicidade. Que Sharon Van Etten, por entre as suas lutas de ser mãe e ter uma carreira e estar afastada da sua cria, nunca deixe de perseguir essa ilusão maravilhosa de que, apesar de tudo, apesar de nós mesmos, é possível ser-se feliz. E que nunca deixe de ser comovente nessa busca.