Uma “história erroneamente rotulada como ‘prostituição infantil'”, “o perdão é importante, mas as consequências também são” e uma pessoa “acima da lei”. São algumas das acusações feitas pelas vítimas que prestaram declarações no decorrer do julgamento de Ghislaine Maxwell, socialite que esta terça-feira foi condenada a 20 anos de prisão por aliciar raparigas menores que seriam depois abusadas sexualmente pelo milionário norte-americano Jeffrey Epstein.

O “último capítulo” do filme de terror chamado “Epstein”? Ghislaine Maxwell condenada a 20 anos de prisão

Alguns advogados estimam que mais de 160 raparigas e mulheres possam ter sido vítimas de Epstein, avança a Sky News. No julgamento, Annie Farmer, Sarah Ransome, Elizabeth Stein, “Kate” e Virgina Giuffre decidiram explicar o impacto que os abusos tiveram nas suas vidas.

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Annie Farmer: “Um dos impactos mais dolorosos do abuso de Maxwell e Epstein foi a perda de confiança em mim mesma”

Annie Farmer evitou “falar publicamente” dos abusos de que diz ter sido vítima durante quase duas décadas. Quando Annie Farmer se dirigiu à juíza, a socialite Ghislaine Maxwell olhou sempre para a frente ou para baixo e nunca para a mulher que descrevia “os crimes”, como revela a televisão britânica. “Durante muito tempo quis apagar da minha mente os crimes que Ghislaine Maxwell e Jeffrey Epstein cometeram contra mim e fingir que não tinham acontecido. Não falei sobre isso durante anos”, começou por contar.

Uma memória “sombria” que preferia manter “trancada”, mas “o mundo não colaborou” com Annie Farmer. Num discurso longo, a psicóloga explicou os efeitos que “os crimes” tinham tido não só em si como na sua família: “Um dos impactos mais dolorosos e contínuos do abuso de Maxwell e Epstein foi a perda de confiança em mim mesma, nas minhas perceções e nos meus instintos”.

Quando os predadores cuidam e depois abusam ou exploram crianças e outras pessoas vulneráveis, eles estão, de certa forma, a treiná-los para desconfiar de si mesmos.”

“Auto-recriminação, minimização e culpa” foram os sentimentos que Annie Farmer teve quando soube que a irmão Maria tinha sido vítima de abusos.”O abuso da minha irmã — a agressão sexual, as ameaças de Maxwell que roubaram a sua sensação de segurança, a maneira como a usaram para chegar até mim — teve efeitos devastadores sobre ela e sobre a minha família, que a viu ficar mais isolada e fisicamente do stress de tudo isto”, detalhou.

Quando penso no passado, vejo uma apresentação de slides de momentos”, garantiu ao explicar em que se sentiu “sobrecarregada” de emoções.

O discurso de Annie Farmer, citado pela Sky News, terminou com um apelo à juíza Alison Nathan. “Uma vez presa, Maxwell enfrentou uma escolha: poderia admitir a sua participação neste esquema, reconhecer os danos causados ou até mesmo fornecer informações que poderiam ter ajudado a responsabilizar outras pessoas. Em vez disso, optou por mentir sobre o seu comportamento”, disse antes de deixar um apelo claro. “Juíza Nathan, espero que quando considerar a sentença de prisão apropriada para o papel que Maxwell desempenhou nesta operação de tráfico sexual, leve em conta o sofrimento contínuo das muitas mulheres que ela abusou e explorou, pois continuaremos a viver com as memórias de como ela nos prejudicou”, concluiu, descrevendo toda a história que envolve Maxwell e Epstein como “erroneamente rotulada como ‘prostituição infantil'”.

“Kate”: “Os muitos atos perpetrados contra mim por Epstein, incluindo violação, estrangulamento e agressão sexual, nunca foram consensuais”

Quando se tornou mãe, “Kate” — nome fictício de uma das vítimas — teve coragem para falar sobre os abusos que havia sofrido. “Foi quando a minha filha tinha cerca de um ou dois anos que procurei o advogado Brad Edwards e comecei a contar-lhe toda a manipulação e abusos hediondos, instigados e perpetuados por Ghislaine Maxwell. Desde a primeira conversa, enfatizei que Ghislaine era a verdadeira facilitadora do meu abuso”.

Imaginar a filha a ser vítimas das mesmas “atrocidades” de que foi alvo despertou a “compaixão” de “Kate”, que garantiu que “nunca existiu qualquer dúvida” sobre Ghislaine Maxwell ter pleno conhecimento do que aconteceria assim que aliciasse menores. “Os muitos atos perpetrados contra mim por Epstein, incluindo violação, estrangulamento e agressão sexual, nunca foram consensuais e nunca teriam ocorrido se não fosse pelo papel astuto e premeditado que Ghislaine Maxwell desempenhou”, explicou.

Estar perto dela [de Ghislaine Maxwell] era como girar muito rápido num círculo e depois tentar manter o equilíbrio”, detalhou.

“Kate” disse em tribunal que sofreu de “ataques de pânico”, “terrores noturnos” e “baixa auto-estima” e lutou “contra a dificuldade em identificar pessoas ou situações perigosas”. Testemunhar esta terça-feira no julgamento foi “aterrorizante”, disse citada pela SKy News, mas a mulher não se arrependeu e afirmou que agora percebeu que o “perdão é importante, mas as consequências também são”.

Virginia Giuffre: “Jeffrey Epstein era um pedófilo, mas eu nunca teria conhecido Jeffrey Epstein se não fosse por si”

Foi a queixa de Virginia Giuffre que resultou na acusação do príncipe André, filho da Rainha Isabel II. É uma das vítimas mais mediáticas do processo, mas a sua declaração foi lida por um representante legal.

“Por mais de dois anos, dos 16 aos 19 anos, fui abusada por Ghislaine Maxwell”, começou por descrever. Foi no verão de 2000, acusou Virgina, que a socialite a “escolheu” para Jeffrey Epstein: “Apenas algumas horas depois, você e ele abusaram de mim juntos pela primeira vez. Juntos, prejudicaram-me fisicamente, mentalmente, sexualmente e emocionalmente. Juntos, fizeram coisas impensáveis que ainda têm um impacto corrosivo em mim”.

Eu quero ser clara sobre uma coisa: sem dúvida, Jeffrey Epstein era um pedófilo terrível. Mas eu nunca teria conhecido Jeffrey Epstein se não fosse por si”, denunciou.

Na nota lida pelo seu advogado, Virginia Giuffre descreveu Ghislaine Maxwell como um “lobo em pele de cordeiro” que “abriu a porta do inferno” para jovens cuja vida estava apenas a começar. “Ghislaine, a dor que me causou é quase indescritível. Por causa das suas escolhas e do mundo para o qual me trouxe, eu não durmo. Pesadelos acordam-me a qualquer hora”, descreveu.

Esta testemunha garantiu ainda que se preocupou “todos os dias e noites” se a socialite iria ou não ser punida. Assim, deixou uma garantia para o futuro: “Eu nunca me vou embora. Se você sair da prisão, eu estaria aqui, a observá-la, certificando-me de que nunca mais magoa ninguém”.

Sarah Ransome: “Tornei-me, contra a minha vontade, nada mais do que um brinquedo sexual humano com batimentos cardíacos”

Ao discursar em tribunal, relata a Sky News, Sarah Ransome desabou em lágrimas. Recordou uma “longa jornada” até à chegada de Ghislaine Maxwell à justiça, mas deixou um lamento: “A contagem precisa de vítimas nunca será conhecida”.

A vida desta mulher mudou quando conheceu e ficou amiga de Natalya Malyshev — que trabalhava para Ghislaine Maxwell e Epstein, que lhe foi descrito como um “filantropo gentil”. A partir daí e nos sete a oito meses seguintes, Sarah Ransome revelou ter-se tornado contra a sua vontade “nada mais do que um brinquedo sexual humano com batimentos cardíacos e alma para o entretenimento de Epstein, Maxwell e outros”.

Sarah descreveu que, numa das visita à ilha onde decorriam os abusos, “as exigências sexuais” tornaram-se “tão horríveis” que tentou pular de um penhasco para águas cheias de tubarões para fugir, mas foi ‘apanhada’ e não conseguiu concluir o plano. Só no ano de 2007 escapou do “horror” ao viajar para o Reino Unido.

Mas as memórias dos abusos ficaram com a mulher. Nunca teve filhos ou casou, como sempre desejou. Disse que se afasta de estranhos e afirmou ainda ter dificuldade em fazer novos amigos porque teme sempre que estejam “associados a Epstein e Maxwell”.

Por causa da sua riqueza, status social e conexões, ela [Ghislaine Maxwell] considera-se irrepreensível e acima da lei”, denunciou no seu testemunho perante a juíza.

No julgamento, Sarah Ransome concluiu a sua declaração ao explicar que condenar Ghislaine Maxwell a passar o resto da vida na prisão daria “a outros sobreviventes” e a si própria “um leve sentimento de justiça”. “Ela nunca, jamais, magoará outra jovem ou criança nesta vida”, garantiu.

Elizabeth Stein: “Fui agredida, violada e traficada inúmeras vezes em Nova Iorque e na Flórida”

Estagiava na Henri Bendel em Nova Iorque quando, um dia, Ghislaine Maxwell entrou na loja. A socialite era uma cliente habitual, mas aquele dia o funcionário que a ajudava não estava de serviço. Teve de ser Elizabeth Stein a auxiliá-la.

Ghislaine foi eletrizante e demo-nos bem imediatamente”, recordou no julgamento desta terça-feira. “Quando ela terminou as compras, ofereci-me para entregá-las para que não as tivesse de carregar o dia todo”, acrescentou.

A missão de entregar as compras levou Elizabeth Stein a um hotel perto da loja. Foi aí que um concierge lhe disse que Ghislaine Maxwell estava no bar acompanhada por Jeffrey Epstein. “Aquela noite no hotel foi a primeira de muitas vezes em que eles me agrediram sexualmente. Fui agredida, violada e traficada inúmeras vezes em Nova Iorque e na Flórida durante três anos”, revelou.

A certa altura, nesse período de tempo, Elizabeth Stein engravidou e abortou. Até hoje, a mulher não tem a certeza de quem seria o pai do bebé — dado o elevado número de abusos a que foi submetida dentro da rede de Epstein e Maxwell, duas pessoas que a “aterrorizavam”.

A mulher explicou que tentou pedir ajuda e denunciar os abusos, mas que foi ameaçada a não o fazer. “Eles disseram-me que se eu contasse a alguém, ninguém acreditaria em mim e, se acreditasse, matar-me-iam a mim e às pessoas mais próximas de mim. Eu acreditei neles”, confessou.

“Por mais de duas décadas e meia senti-me como se estivesse na prisão”, enquanto Ghislaine Maxwell foi “livre para viver uma vida de riquezas e privilégios”, salientou. “Ela tinha a sua vida. É hora de ter a minha. Ela precisa de estar na prisão para que as suas vítimas possam finalmente ser livres”, declarou Elizabeth Stein.