O Teatro Maria Vitória, no Parque Mayer, em Lisboa, celebra esta sexta-feira cem anos de uma existência “provisória”, que se estendeu no tempo, até ser o único ali existente, tendo sobrevivido a um incêndio e às crises financeira e pandémica.
O empresário Hélder Freire Costa, de 81 anos, que está à frente do teatro há 47 anos, foi ali parar por um acaso e agora prepara a sucessão, embora conte viver ainda alguns anos mais, esperando cumprir o sonho de o ver ganhar mais espaço e mais conforto.
“Estou no Maria Vitória empurrando aquilo para a frente, sabendo também que tenho na mão um teatro que está envelhecido, que tem cem anos, que foi criado como teatro provisório – porque foi no início da inauguração do Parque Mayer, 15 dias depois da inauguração do Parque Mayer –, e que se tornou definitivo até hoje”, recorda, em entrevista à agência Lusa.
Hélder Freire Costa lamenta ser esta sexta-feira o único que produz todo o teatro de revista no Parque Mayer, onde em tempos chegaram a funcionar quatro teatros.
“É um teatro muito nosso que se implantou em Portugal com enorme sucesso. O parque Mayer passou a ser de uma certa forma a catedral dessa forma teatral. No Parque Mayer só resiste o Teatro Maria Vitória, que nunca deixou de funcionar, nos últimos 47 anos pela minha mão. Eu estou Parque Mayer há 58 anos“.
Esteve também no Capitólio e no Variedades, trabalhou quando ainda não havia dias de descanso em teatro, o que começou em 1967, quando já estava no Maria Vitória.
Na altura os teatros tinham de escolher os dias em que folgavam e faziam rotatividade. O dia da semana escolhido pelo Teatro Maria Vitória para descanso foi a segunda-feira, e o tempo veio comprovar que tinha razão, porque, hoje em dia, em todos os teatros se folga nesse dia, afirmou.
“Agora no Parque Mayer só está o Maria Vitória infelizmente, porque, como sempre disse e nunca desistirei de o dizer, mais teatros trazem concorrência, trazem mais público. Hoje o público entra no Parque Mayer é para ir ao Maria Vitória, não tem mais solução nenhuma, não há outro teatro e isso é mau. Antigamente lutávamos contra o Teatro Variedades, contra o ABC, contra o Capitólio, éramos quatro teatros a funcionar e ainda havia um teatro ao ar livre, que era no antigo pavilhão português”.
Segundo o empresário, o Capitólio foi reinaugurado, “mas de teatro não tem nada“, o Variedades está para ser reinaugurado, mas também vai ser um teatro com uma pequena lotação e promete-se que o Maria Vitória vai ser um teatro maior.
Na opinião de Hélder Freire Costa, a população portuguesa deve muito da cultura que tem de diversão ao Parque Mayer, que foi planeado em 1922 para substituir uma feira que tinha havido nos terrenos que são atualmente os do Parque Eduardo VII.
Quando acabou essa feira, conhecida como a feira do verão ou a feira de agosto, deu-se a “sorte” de ter havido um “incidente com a família Mayer, que os levou a vender o palacete onde vivam, e os seus jardins, tendo ido “parar às mãos de Luís Galhardo, que era um grande fã de teatro”.
Na altura tinha morrido uma artista de origem espanhola, de nome Maria Vitória, uma jovem irreverente, que cantava fado e era atriz, o que “causou alguma consternação no país porque era muito azougada, estimada”, contou.
“O público gostava muito dela e a sua morte inesperada trouxe saudades e comoção às pessoas, e o Luís Galhardo pensou logo em criar um teatro e dar-lhe o nome Maria Vitória. O nome deu sorte ao teatro, foi sempre o mais procurado. Começou como espaço provisório. Os outros foram construídos como teatros — o ABC foi eliminado, foi abaixo, e hoje é o espaço de estacionamento no Parque Mayer — e eu tive a sorte de lá ir parar e fazer parte da historia do Parque Mayer”.
Quando fala em sorte, Hélder Freire Costa refere-se ao acaso que o colocou no caminho do teatro de revista, em 1964.
“Eu comecei no Capitólio, ainda era um teatro novo, que me entusiasmou, talvez aí a minha paixão se tenha desenvolvido, porque eu não tinha nada a ver com teatro, eu trabalhava num Banco, de onde fui despedido porque chegava sempre atrasado“.
Então pôs um anuncio num jornal, numa das páginas de emprego e, certo dia, ao chegar a casa, a mãe avisou-o de que lhe tinham ligado por causa de um anúncio para o Capitólio, que na altura era conhecido como cinema, era um cine-teatro.
“Eu era um miúdo, tinha 23 anos e pensei: ‘Vou responder a isto, tenho cinema de borla’. E respondi”.
Começou então a trabalhar com o empresário Giuseppe Bastos e, passado algum tempo, era o seu secretário e confidente, frequentava a sua casa e tornou-se amigo da família, a ponto de a certa altura ter posto “o pé à parede”, porque o empresário se comportava como se fosse seu pai.
Durante este período trabalhou também com Vasco Morgado, outro dos empresários do Parque Mayer, e quando Giuseppe Bastos morreu, os artistas que ali trabalhavam propuseram-lhe que continuasse, porque era o secretário da empresa e, na altura, tinha “o êxito na mão”.
“Estávamos com uma revista de grande sucesso, que foi uma das primeiras revistas livres do pós-25 de Abril, sem censura. Chamava-se “Até parece mentira”, lembrou, assinalando que costuma dizer que é “empresário à força”, porque os artistas é que pediram que continuasse.
Giuseppe Bastos morreu em abril de 1975 e, daí para cá, Hélder Freire Costa já produziu cerca de 60 espetáculos de revista.
“Tenho estado de pé, com saúde, recentemente fiz um “check up“, nada acusa, estou bem, e portanto espero ainda durar mais alguns anos para dar satisfação aos meus colaboradores e encontrar soluções de sucessão”, afirma.
Ao longo deste mais de meio século ligado ao Parque Mayer, o episódio que mais o marcou foi o dos incêndios no Teatro Maria Vitória.
“Foi em 1986 e, passados uns anos, tive mais um pequeno fogo na oficina do teatro, no espaço do arquivo, mas o mais importante foi o de 1986, que destruiu grande parte do teatro e simultaneamente o espetáculo que estava para estrear 15 dias depois, onde a Ivone Silva se estreava como encenadora na nossa companhia”.
Esse espetáculo, que se intitulava “Aqui há gato”, foi então apresentado no Teatro Municipal Maria Matos, por cedência do então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Nuno Krus Abecassis, e mudou o nome para “Isto é Maria Vitória”, “até para fazer com que o público se apercebesse de que era a companhia Maria Vitória”.
Além dos incêndios, Hélder Freire Costa passa em revista os períodos difíceis que o teatro atravessou e aos quais sobreviveu: as manifestações quase diárias após o 25 de Abril para consagrar a liberdade, a “crise financeira do país que nos arrastou para as ruas da amargura e que acabou com uma data de companhias” e a pandemia, que agitou a parte cultural e toda a atividade teatral.
“Fiquei com bastantes problemas, mais uma vez tive graves prejuízos, os apoios são sempre insuficientes, também vamos dizer em abono da verdade, os outros não têm obrigação de nos apoiar, a gente é que tem de lutar para saltar os escolhos”, diz, afirmando que agora também “não é altura de desistir”, acha isso “uma cobardia”, porque há pessoas que acreditam nele e o apoiam.
Para o futuro deseja um teatro com as condições mínimas para o conforto do público, embora recorde a frase de Henrique Santana, de que “no teatro não convém dar muito conforto, porque o público adormece”.
Mas confessa que gostava que o Maria Vitória tivesse um conforto mínimo, uma coxia central, que fosse maior, e que o edifício englobasse salas de ensaio, sala de costura, uma livraria e uma oficina abundante, porque atualmente a oficina ocupa uma parte do palco e os ensaios só podem decorrer com o teatro encerrado.
“No Teatro Maria Vitória houve um grande erro: nunca devia ter sido um teatro de revista, porque [este género] requer muita arrumação, tem muito material, muita bugiganga, muito guarda-roupa e o Maria Vitória não tem condições para ter essas coisas todas”.