É grave a galopante desertificação humana de vastas parcelas do país continental e insular, entre outros imbróglios que tais, mas pouca atenção recebe porque o sound bite da política partidária, a hiperbolização das causas fraturantes e o espectáculo das redes sociais absorvem, dominam ou perturbam a vida pública e sacodem para mais tarde as conversas que verdadeiramente importaria ter aqui e agora. Felizmente aparecem livros como este, que expõem tentativas antigas de resolver os mesmos e já velhos problemas, mas das quais, todavia, pouco mais ficou que “desconhecimento generalizado” (p. 8).

Num livro que comprova a excelência do trabalho da editora Dafne, a alta qualidade das reconstituições de plantas, alçados e mapas pelo desenhador digital Daniel Duarte Pereira, e o design maduro — que boa que é, esta paginação clara e limpa! — de Pedro Nora, Filipa de Castro Guerreiro (n. 1976) redescobre as sete colónias agrícolas construídas de 1936 a 1960, de Pegões a Paredes de Coura e Vila Nova do Barroso (p. 90), como tentativa de “fixar população” e “aumentar a produtividade e promover a transformação dos trabalhadores agrícolas em pequenos proprietários”, salvaguardando ao mesmo tempo “a diversidade de expressões arquitetónicas e de estruturas de povoamento” que “atendeu à geografia local” (p. 8). Esta campanha — documentada fotograficamente pelos Estúdios Novais e um pouco também pelo redescoberto Artur Pastor — teve, verdade seja dita, um efeito muito reduzido em termos de área de intervenção e número de famílias médias instaladas nos casais que eram a unidade-base das colónias agrícolas, mas partiu da boa ideia de dividir baldios em glebas e incentivar a respetiva colonização (p. 23) através do regadio — algo que vinha de meados da década de 1920, e que o ministro das obras públicas Duarte Pacheco (1900-43) retomou com a lucidez e o ímpeto que tanto o caracterizaram.

Um inquérito de sociologia rural feito em 1934-36 pelo Instituto Superior de Agronomia, a partir de três casos de estudo, visou caracterizar a economia das explorações agrícolas e as condições de vida dos trabalhadores do campo, de modo a fornecer bases a uma política pública de colonatos em que uma apropriada dimensão da propriedade agrícola — 10-20 hectares — “assegurasse a auto-suficiência económica” de cada família (p. 25) e ajudasse a “melhorar o regime demográfico dentro do país, provocando migrações internas dos centros de maior densidade de população para as regiões menos populosas” (p. 29). Um grande estudo de “Reconhecimento dos baldios do Continente”, concluído três anos depois, em 1939, permitiu identificar quais tinham verdadeira aptidão agrícola e implantar de imediato, para os de exclusiva aptidão florestal, um plano de povoamento de longa duração. É aquilo a que em 1938 alguém chamou, quase singelamente, “preocupação de observar prudentemente o país antes de intentar qualquer obra de colonização” (cit. p. 112; itálico meu)… Foi então projetada a instalação de 739 casais em 11 baldios, ocupando globalmente 96 507 hectares. A Herdade de Pegões (Montijo) e a Mata Nacional da Gafanha (Aveiro) — duas propriedades do Estado — serviram de experiências-piloto dessa colonização dos baldios, e em maio de 1946 o estatuto perpétuo, inalienável, indivisível e impenhorável do casal agrícola estava regulamentado por lei.

Cinco anos após a sua fixação, cumpridos certos requisitos e garantias cada família assumia a propriedade perpétua do seu casal agrícola, sendo os restantes filhos encorajados a partir para Angola e Moçambique, o que permitiu a Filipa de Castro Guerreiro assumir que “as colónias agrícolas da Junta da Colonização Interna também podem ser vistas como um laboratório para o projeto de colonização ultramarina” (p. 30). Havia infra-estruturas de assistência social, médica, escolar e religiosa, e em alguns casos abastecimento elétrico, água ao domicílio, cooperativas de consumo, fornos comunitários, rede de combate a incêndios, até um cemitério, além, claro está, de queijarias, adegas, vacarias, etc., e até zelo de ordenamento paisagístico (p. 41; v. Aldeia Nova do Barroso, pp. 89-90), por exemplo com cortinas florestais de abrigo (v. pp. 77, 101), que também delimitam parcelas. Nuns casos o assentamento foi concentrado, noutros disperso, o que, aliás, é elegantemente expresso na variada cartografia incluída. Nos anos 40, colónias de maior dimensão, como Martim Rei, na Serra da Malcata, e a já citada Aldeia Nova do Barroso, dispunham de médico residente e de escola primária própria, construída seguindo aqueles projectos-tipo regionais desenvolvidos pela Direção-Geral dos Monumentos Nacionais e que ainda hoje resistem solidamente na paisagem portuguesa, com a mesma ou uma já renovada — e por vezes bem criativa — função.

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Título: “Colónias agrícolas. A arquitectura entre o doméstico e o território, 1936-1960”
Autora: Filipa de Castro Guerreiro
Design: Pedro Nova
Desenhos: Daniel Duarte Pereira
Editor: Dafne
Páginas: 300

Esta política colheu inspiração em programas congéneres desenvolvidos noutros países, em particular a Itália, com a Boneficia Integrale criada por Mussolini em 1928, mas viagens de estudo à Holanda, Alemanha, Argélia e Tunísia pelo presidente da Junta de Colonização Interna também foram reportadas em 1937 (p. 32, n. 53). Essa lúcida e prevenida prospeção internacional capaz de otimizar os projetos — contrariando o conveniente mito do isolamento pátrio, e sinal de “bons tempos” e trabalho bem feito, dir-se-ia… — prosseguiu no pós-guerra e durante a década de 50, incluindo, além dos já referidos, países como Áustria e Suíça (p. 40), numa perspetiva já mais orientada pela mecanização e industrialização da agricultura, que a expansão da hidráulica agrícola favorecia. Em 1959, perto de Mirandela, um projecto dito de “aldeias melhoradas” tomou forma após uma visita a aldeias no Norte de Itália pelo arquiteto José Luiz Pinto Machado, que abriu caminho a uma renovação aldeã que beneficiou, até 1972, “1042 habitações inseridas em 38 aldeias” (p. 45). Em 1965 a JCI desenvolveu em herdades entretanto adquiridas explorações experimentais, duas de regadio, uma de sequeira e outra mista, onde foram ensaiadas técnicas de cultivo intenso de forragens, mas sem rendeiros e trabalhadores locais.

Diferentes e sugestivas configurações dos parcelamentos domésticos articulavam-se urbanisticamente com infra-estruturas agrícolas e sociais, em colonatos que podiam ter meia dúzia de núcleos esparsos e dispensar a opção simplista por habitações em banda retilínea à beira duma estrada ou duma linha de regadio. A distância entre moradias parece geralmente aceitável, mesmo em aglomerações concentradas (v. foto p. 36; mapas pp. 70-71, 72-73, 80, etc.), e, como já vimos, as casas-tipo tinham inspiração regionalista, no risco dos arquitetos como na escolha de materiais e técnicas de construção, do mesmo modo que os cultivos eram os dominantes na região de cada colonato. Vista de hoje, a igreja de Santo Isidro (Pegões, 1951), com a sua “expressão arquitetónica experimental” (p. 199), tem algo de moderno que lhe fica muito bem (v. fotos pp. 197, 221), mas é sobretudo na leitura da justa distância entre casa familiar e espaço público que a autora encontra a rutura mais evidente na forma de assentamento rural adotada pelas colónias agrícolas da JCI, o que, diz, “permite olhar para um conjunto de problemas cujo debate nos parece hoje muito atual”, ou sejam, “quais as variáveis de projeto num contexto de ação em territórios desruralizados e extensamente urbanizados” (p. 111).

Ao longo dos anos, as expectativas iniciais foram sendo reavaliadas e os projetos de colonização, assentamento e construção sofreram adaptações ou cortes, enquanto novos projetos ficariam pelo papel em que foram desenhados. A autora estabelece “quatro momentos no desenho do território, do assentamento e da casa”, e considera essa periodização um factor essencial para “entender a diversidade das intervenções arquitectónicas” (p. 108) da Junta de Colonização Interna. A Herdade de Pegões e a Mata Nacional da Gafanha — com terrenos arenosos, pobres portanto — foram eleitas como casos destacáveis para uma “propaganda” (p. 126) dos esforços de reabilitação agrícola de territórios mediante estudos agrológicos e afins, além da fertilização dos solos e da implantação dos edifícios atendente à “otimização da orientação solar e a proteção dos ventos dominantes” (p. 133), e de quatro diferentes modelos de moradias que anulassem a monotonia do conjunto, e fossem ao mesmo tempo uma avaliação atualizada da “habitação rural e dependências agrícolas”, articulada com acções desenvolvidas nesse sentido pelo Ministério da Economia (p. 141).

Há em tudo isto “a intenção consciente de construção de uma paisagem” (p. 152), na qual estivessem plasmados “valores tradicionais” do velho Portugal rural e o ímpeto “civilizador” que o Estado — dito Novo — se atribuía, através da construção de estradas e outras infra-estruturas, como as pousadas propiciadoras de turismo, criadas por António Ferro. Neste domínio, a sageza de geógrafos como Amorim Girão e Orlando Ribeiro, mas também do jovem arquiteto paisagista Francisco Caldeira Cabral e já então as lições dos etnólogos Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira (p. 182),  parecem ter sido decisivas para que os tipos de povoamento propostos para as colónias se aproximassem “naturalmente” (p. 157) daqueles existentes em cada região. Ainda que não generalizáveis, outras influências estão presentes, como a do modelo inglês da cidade-jardim no desenho urbanístico da Gadanha, sugerida por Rui Garcia Ramos (cit. p. 172). Filipa de Castro Guerreiro comprova que arquitetos da Junta de Colonização Interna, como Luiz Pinto Machado e Henrique Abecassis, estavam a par de novíssima bibliografia europeia e de debates em curso. A certa altura, Guerreiro diz mesmo que “entre os funcionários da JCI, a Gafanha era conhecida como a colónia da Broadway” (p. 204). É por isso que na década de 1950 a abstração geométrica — incluindo o panótico — vem instituir carácter, legibilidade e inscrição no território a novos colonatos agrícolas desenvolvidos, por exemplo, no Barroso trasmontano, ao mesmo tempo que, esclarece a autora, “o projeto para o edifício procura claramente compreender os dispositivos tradicionais de resposta às condições climatéricas da região, reinterpretando-os” (p. 186), e a “enraizada relação de proximidade entre o colono e os seus animais” (p. 187). A cozinha acaba por ser o espaço de relevância central na habitação ao qual os arquitectos da Junta conferem melhoramentos de iluminação, criando duas janelas e uma claraboia, e de climatização, pois o espaço aberto “permite que o aquecimento produzido pela lareira aqueça toda a casa” (p. 188).

Colónias Agrícolas também reflete sobre as mudanças criadas pelo contrastivo I Congresso Nacional de Arquitetura, de 1948, no qual Nuno Teotónio Pereira admitiu que os departamentos do Estado com maior autonomia administrativa são os que “mais rapidamente encomendam projectos a jovens arquitetos sem qualquer imposição estilística” (p. 196). Dir-se-ia uma referência ajustável à Junta de Colonização Interna, cujos contratados em 1947 “trouxeram maior diversidade arquitetónica aos projetos” (p. 197) e ao redesenho “económico” (p. 213) de alguns dos já existentes. É por isso que também neste ramo tão específico da arquitetura rural afloraram “edifícios e conjuntos que expressavam claramente simpatia pelas obras de Le Corbusier ou Oscar Niemeyer”, mas também pelo trabalho de Francisco Keil do Amaral em Canas de Senhorim e no parque de Monsanto em Lisboa (pp. 213, 217, 218). A quem passe pela igreja de Santo Isidro, em Pegões (1951), isso salta-lhe à vista instantaneamente, mas talvez se pudesse ainda falar, o que a autora não faz, da inspiração — ainda que remota — da Chandigarh indiana (1947-51), como grande, fascinante laboratório duma nova fixação humana, em que urbanismo, arquitetura e mobiliário foram concebidos como um todo, duma ponta a outra e de alto a baixo.

Um “centro cívico” tornou-se “uma referência fundamental no planeamento”, uma vez mais sem “modelo imposto pelo organismo” e “expressando perspetivas diferentes sobre o carácter dos espaços públicos” (p. 211), oscilante entre o simbólico e o vivencial.  Foi nos equipamentos sociais que “a JCI estaria disponível para arriscar experiências construtivas”, como as paraboloides ou as persianas móveis em Lusalite por exemplo, “mas para os edifícios dos colonos, que seriam objeto de empréstimos a longo prazo, adotava soluções testadas e enraizadas (p. 222). Ainda assim, na década de 1950 a presença de arquitetos paisagistas nas equipas projetistas (onde havia agrónomos) — e o estado da arte no ofício, politicamente motivado, em que o colectivismo superava o individualismo (“egoísmo”, p. 251) — haveria de influenciar uma mudança no desenho dos assentamentos, em que a casa unifamiliar isolada deu lugar a edifícios geminados e em banda. “A casa, como entidade, deixou de ser o objeto central do projeto” (p. 232), e a “faixa de parcelas” tornou-se “o elemento base da composição paisagística” (p. 245). Em 1954-56, o engenheiro agrónomo e arquiteto paisagista António Roquette Campello optou por um assentamento concentrado, autónomo da rede viária territorial, agora predominante (p. 240), para novos núcleos da colónia da Gafanha, correspondendo a uma nova orientação na Junta. Um pouco mais tarde, projetos para novos casais na Boalhosa-Vascões, haveriam de aproximar-se — “em sintonia”, p. 257 — do trabalho que Nuno Teotónio Pereira desenvolveu para as Habitações Económicas da Federação de Caixas de Previdência. Em 1957, Vasco Lobo projetou a adega cooperativa de Pegões, como projeto para diploma de curso na ESBAP (p. 263), construída no ano seguinte. Ou seja, o debate interno na Junta de Colonização Interna refletia as grandes tendências do momento, inclusive à escala global, com uma liberdade e clareza propiciada pela presidência do engenheiro Vasco Leónidas que, afirma Filipa de Castro Guerreiro, manifestou “grande abertura relativamente à opinião e visão dos funcionários e especificamente dos arquitetos, [de modo a] traçar novos objetivos e modos de funcionamento do organismo” (p. 242).

As vinte páginas finais do livro são um elogio a esta experiência exercida por um organismo público que soube articular arquitetura e geografia em espaço rural, apoiando-se firmemente na “identificação de elementos e particularidades específica de cada lugar”, e enfeixando-a numa velha tradição portuguesa de construir, sobre a qual a autora convoca Álvaro Siza Vieira, Alexandre Alves Costa e Paulo Mendes da Rocha. Mas diz mais, diz que a flexibilidade das colónias agrícolas “permite ler o seu sentido operativo para enfrentar o trabalho da arquitetura no território contemporâneo” (p. 285). Que só agora este livro tão meritório de Filipa de Castro Guerreiro venha descortinar essa realidade instigante, é que nos deve deixar a pensar…