Quatro dias apenas sobre os quarenta anos da morte de Abel Manta, João Abel Manta volta a Gouveia — onde seu pai nasceu em 1888 e dá nome ao pequeno museu municipal de arte moderna — para se apresentar numa exposição que pela primeira vez junta e confronta o cartoonista/ilustrador e o pintor de retratos que ele também foi. Um ano depois de o Palácio da Cidadela de Cascais ter mostrado “João Abel Manta: a máquina de imagens” (de 5 de outubro de 2021 a 16 de janeiro de 2022; exposição que foi adiada pela pandemia), esta nova exibição vem recolocar em evidência a obra deste artista tão multifacetado, original e independente, porém tendencialmente esquecido e que carece ainda de uma campanha de estudo e interpretação que o coloque no seu devido lugar na história da arte portuguesa do século XX. Lançado em 2008 pela Assírio & Alvim, o livro de João Paulo Cotrim subintitulado —  evocando Goya — “Caprichos e Desastres” teve o mérito de ensaiar e inaugurar esse reenquadramento, mas o impulso dado foi insuficiente para, num só gesto, remover a indiferença e a placidez habituais.

Desde que, em 2016, publicou um pequeno livro sobre João Abel Manta na colecção Designers Portugueses dirigida por José Bártolo para a Cardume Editores e o jornal Público, Pedro Piedade Marques (1971-) tem assumido o encargo de não deixar esquecer o autor de Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar (dezembro de 1978). No fim de 2018 — enquanto a EGEAC-Lisboa dormia em serviço ou assobiava para o lado, é como preferirem —, organizou na Galeria Valbom uma exposição comemorativa dos 40 anos da publicação deste livro-catarse, que nos próximos meses a Tinta-da-China reimprimirá com um estudo de sua autoria intitulado “Manta e o fantasma de Salazar: um exorcismo de meio século português”. Foi depois convidado para conceber a exposição de Cascais, também com catálogo próprio (o da Valbom foi editado por Caleidoscópio e traz depoimentos variados, que merecem leitura) dedicado à obra daquele que aí considerou ser o “mais sólido e teimoso ariete gráfico da imprensa liberal lisboeta” (p. 20). Além disso, tem manifestado legítima e lúcida preocupação com a conservação — e o estatuto jurídico — do vasto espólio cedido pelo artista à Câmara Municipal de Lisboa aquando da exposição da sua obra gráfica no Museu Bordallo Pinheiro, no longínquo ano 1992, e hoje está aos cuidados — e também aos “descuidados” — do Museu da Cidade.

3 fotos

Em boa hora visitada por elementos do Município e deste Museu de Gouveia, a exposição de Cascais inspirou esta, na cidade à qual o artista hoje com 94 anos já oferecera parte da sua colecção de arte (é, aliás, o principal doador do museu em que agora expõe). Diz o presidente da Câmara, na nota prévia protocolar, que “o espaço do pai é também o espaço do filho” (cat., p. 5), porém convenhamos que esta exposição é bem mais do que isso. Excelente exemplo de descentralização cultural — ou de itinerância expositiva —, tão elogiada em geral mas tão pouco concretizada em particular, participa da campanha de redescoberta em curso de João Abel Manta, antecipando ao mesmo tempo, e com toda a propriedade, a reavaliação historiográfica da Revolução de Abril de 1974 e o lugar que nela tiveram a produção artística e a propaganda política, em que Manta muito claramente se destacou e está fixado no volume Cartoons 1969-1975 (Edições O Jornal, 1975; prefácio de José Cardoso Pires; uma nova edição, ampliada até 1992, está também na forja). Neste ponto, é de lamentar a ausência — certamente por absoluta impossibilidade — do poster de dupla página saído no Diário de Lisboa logo a 28 de Abril de 1974, em que o cartoonista cauteloso interroga “Primavera?”, ao desabrochar duma rosa — não um cravo — sobre fundo celestial com nuvens e saindo de uma terra enegrecida, adivinha-se, pelo longo domínio estado-novista (2016, p. 17).

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O curador teve de adaptar a narrativa expositiva a uma sequência de cinco salas numa casa nobre de habitação, organizando quanto possível núcleos temáticos coerentes. Deu, por isso, privilégio da abertura à famosa série de caricaturas — colagens e guaches — de Salazar feitas para o álbum de 1978, logo de início expondo a fortíssima obsessão pessoal do artista, que foi preso ainda muito jovem pela PIDE, em 1948, e perdeu um dos seus melhores amigos, o escultor José Dias Coelho, assassinado a tiro na rua pela polícia política em 1961. O ditador perfilado surge, mais adiante, em duas obras igualmente impactantes — Coimbra (colagem com guache, sem data, 34,5 x 30 cm; cat. p. 59) e Terreiro do Paço (óleo sobre tela, sem data [1991-2009], 100 x 75 cm; cat. pp. 100-101) — e numa sequência de cinco desenhos a lápis, supostos de 1975, alusivos à vida de Salazar, também da colecção do artista e pela primeira vez mostrados.

Miguel Torga

O facto de o pai Abel ser um pintor estimável e estimado pelos artistas Novos & Independentes deu a João Abel estudante de arquitectura e desenhador exímio desde criança a oportunidade dum convívio que se traduziu em retratos logo em finais dos anos 40, de que vemos alguns feitos em Paris, como os de Helena Vieira da Silva, Arpad Szenes e António Dacosta, mas também de Ernesto de Sousa, Boris Vian ou Le Corbusier. Porém, há que admitir que a extrema destreza do artista — Pedro Piedade Marques chama-lhe “proficiência técnica assombrosa” (p. 47), “olho clínico e mão polivalente” (p. 17) — tem a sua melhor prova nos três apontamentos instantâneos de Igor Stravinsky durante ensaios com a Orquestra Sinfónica Nacional em Maio de 1954.

Poucos anos bastariam para que o domínio preciso e precioso da tinta da china e o recurso à colagem de gravuras de revistas finisseculares se tornassem marca inconfundível do seu estilo, vazado nos derradeiros números de Almanaque (1960-61) e de modo muito especial nas ilustrações dos dois tomos de Os Corvos de Leitão de Barros (1960) — com os quais a publicação serial tinha evidentes “afinidades”, como afirma António Araújo num livro sobre Almanaque a sair brevemente —, que inesperadamente estão ausentes nesta exposição enquanto deliciosas obras-primas de talento visual e de observação social actualizada. De resto, toda a exposição ganharia em apresentar em vitrines exemplares físicos desses velhos jornais — do Diário de Lisboa ao Diário de Notícias, do Jornal de Letras, Artes e Ideias ao Diário Popular (cartaz do Ano 1967, cat. p. 88; aliás, existente na reserva do próprio Museu) —, para pedagogia das novas gerações, ampliando o interesse de visitas escolares e afins. Isso é particularmente válido para a colaboração de João Abel Manta no Diário de Lisboa, onde os desenhos para as crónicas de José Cardoso Pires (e até os anúncios ao seu livro O Burro-em-Pé) ou a série dos “Diálogos Confidenciais” (1973) conquistaram uma dimensão gráfica e uma relevância editorial que denotam um claro progresso no jornalismo às vésperas da revolução.

Pessoalmente atribuo a esses “Diálogos Confidenciais”, cruzando personagens vivas e mortas em jubilosas afinidades electivas ou em cruéis dissensões, toda uma crónica da vida cultural do seu tempo que importaria deslindar paciente e capazmente enquanto juízo individual dum artista ilustrado, senão mesmo como representação duma tendência ou facção estética. Não pode ficar-se pela nossa admiração de uma excelência oficinal a cena em que Amadeo de Souza-Cardoso trava na rua José-Augusto França e lhe pergunta, pisando-lhe o pé e amedrontando-o, se foi ele quem escreveu O Português à Força, aquela em que Hernâni Cidade estudioso de Camões lhe recusa ostensivamente uma esmola, ou mesmo aquela em que Fernando Pessoa, segurando pela gola do casaco o pequeno e anafado João Gaspar Simões, parece recriminá-lo pela biografia que dele escreveu em 1950. Não pode, de todo. Do mesmo modo, será preciso olhar bem para os retratos de António Ferro (1971, cat. p. 56; e 1978, nas Caricaturas) e reconhecer que neles não há a diabolização — tantas vezes rudemente repercutida — do grande modernista que serviu o ditador, ou avaliar a razão consciente pela qual João Abel Manta destacou as geometrias do painel Começar como pano de fundo das três idades de José de Almada Negreiros (1971; cat. p. 70), e não os notáveis painéis das gares marítimas, senão mesmo por que deixou para tão tarde a única representação — aliás, versão a carvão de uma fotografia famosa — que lhe conhecemos de Rafael Bordallo Pinheiro (sem data, cat. p. 80), a grande referência do cartoonismo português porém omissa na lista de “grandes artistas” do lápis evocados no seu «Requerimento» pela liberdade de expressão publicado no Diário de Lisboa a 5 de Setembro de 1969.

Luis de Sttau-Monteiro

Mais ainda: que o terá levado a sugerir a reabilitação de Manuel Teixeira Gomes (1974; cat. p. 78), qual dândi recostado numa poltrona anos 60 e quadro abstracto na parede, numa representação que encontrou certamente em André Carrilho um discípulo atento e competente? E porquê António Botto jovem perplexo diante duma mobília burguesa de elegante gravura antiga? O que denota toda a sua atenção compassiva a Eça de Queiroz, grande retratista do Portugal oitocentista, ao mesmo tempo que exibe D. Francisco Manuel de Melo (1606-66) assediado à boca de cena por manifestantes exaltados do Movimento de Libertação das Mulheres (cat., p. 85)? E todas as outras figuras do seu tempo que ele, simplesmente, não retratou (ou não estão identificados), e porquê? (Penso por exemplo em Manuel Mendes, cuja casa e família frequentou, como se vê em fotografias na vivenda deste no Restelo, à guarda da Fundação Soares; no pintor e grande amigo Rolando Sá Nogueira; e em Diogo de Macedo, crítico de arte e director do Museu Nacional de Arte Contemporânea — em contrapartida, um retrato do escultor Jorge Vieira, de 1981, pode ser visto na exposição: cat. p. 90).

Temo que estas e muitas outras questões fiquem no ar — ou escapem de todo — a quem visite esta exposição em Gouveia, mas por enquanto de outro modo não poderia ser. Só o arquivo do artista e os de quem com ele mais tratou podem iluminar mais e melhor a vida e a complexa obra gráfica e pictórica de João Abel Manta (neste domínio, a biografia de José Cardoso Pires Integrado Marginal, por Bruno Vieira Amaral, em nada nos vem ajudar), para além das referências alemãs e francesas através das quais Pedro Piedade Marques encontra argumentos para aproximar, sem rupturas, obra gráfica e obra pictórica. Porque alguma perplexidade (ou “fascinante paradoxo”, cat., p. 36) há de restar quando em tão poucos anos — e coincidindo com a morte do pai, em 1982, o que não pode deixar de ser levado em conta, por todas as razões — o comunicador tão limpo e claro dos desenhos de imprensa se transformou no pintor dum expressionismo radical, de grandes massas de tinta sombria de que ressurgem figuras fantasmáticas e grotescas (os retratos de Gil Vicente e de Fernando Pessoa que o digam…). Nesse ponto, esteve particularmente bem o designer José Brandão, ao colocar na abertura do catálogo o retrato de Columbano Bordallo Pinheiro a pintar (óleo sobre tela, 1991-2009, 100 x 75 cm), fazendo retroceder ao declarado adversário dos modernistas a grande referência do “pintor tardio” de retratos que foi João Abel Manta.

“O Retrato em João Abel Manta. Perfis para as Selectas”, com curadoria de Pedro Piedade Marques. Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta, em Gouveia. De 12 de agosto a 16 de outubro de 2022