Em 1989, no dia 14 de fevereiro, Salman Rushdie recebeu um telefonema. Era uma jornalista da BBC que queria obter a reação do escritor à condenação à morte que o aiatola Ruhollah Khomeini, líder supremo do Irão e um dos principais mandantes dos muçulmanos xiitas, havia emitido pouco antes.
Salman Rushdie ficou surpreendido. Não sabia de nada. Não sabia que, pouco antes, Ruhollah Khomeini tinha pedido a cabeça do escritor (e de todos os editores e publicantes com quem trabalhava) a “todos os muçulmanos corajosos do mundo” numa mensagem emitida a partir do palácio em Teerão: “Apelo a todos os valentes muçulmanos, onde quer que estejam no mundo, para matá-los sem demora, para que ninguém se atreva a insultar as crenças sagradas dos muçulmanos daqui em diante”.
Salman Rushdie esfaqueado no pescoço num evento em Nova Iorque
Começavam nesse dia mais de três décadas de ameaças de morte por causa do conteúdo das suas obras. É que, depois de ter escrito “Grimus” em 1975 e “Os Filhos da Meia Noite” em 1981 — o livro valeu-lhe Booker Prize, em 1981, o Booker of Books, em 1993, e o Best of the Booker, em 2008 —, a vida de Salman Rushdie viria a mudar radicalmente após a publicação, em 1988, de “Versículos Satânicos”.
Nessa altura, Salman Rushdie estava divorciado há um ano da primeira mulher, Clarissa Luard, mãe do filho mais velho, e tinha casado com Marianne Wiggins nesse mesmo ano. Divorciou-se em 1993, voltou a casar em 1997 com Elizabeth West, com quem viria a ter outro filho. Divorciou-se novamente em 2004 e nesse mesmo ano casou com Padma Lakshmi. Em 2007, o casamento terminou.
Ora, o romance de “Versículos Satânicos” gravita em torno de dois emigrantes indianos em Inglaterra que sobrevivem miraculosamente a um ataque aéreo perpetrado por extremistas — um porque se transformou magicamente no arcanjo Gabriel, outro porque se metamorfoseou no Demónio. O título é uma referência a versos que Maomé retirou do Alcorão porque lhe terão sido apresentados por forças pagãs e satânicas como se fossem uma revelação divina.
Algumas das características dos protagonistas da obra têm semelhanças com a vida do próprio autor. Salman Rushdie nasceu em Mumbai no seio de uma família muçulmana de Caxemira, filho de um advogado e empresário educado na Universidade de Cambridge e de uma professora. Emigrou depois para Inglaterra para estudar na mesma universidade que o pai, mas em Belas Artes, e foi para o Reino Unido que voltou depois de uma passagem com a família pelo Paquistão.
Salman Rushdie: “As pessoas estão muito alienadas da democracia e isso é muito perigoso”
Ora, “Versículos Satânicos” foi banido na Índia, no Paquistão, em África do Sul e em vários outros países muçulmanos por ser “blasfemo”. Mas Salman Rushdie teve de viver com mais do que a censura: nascido em Mumbai em 1947, dois meses antes da independência ao Reino Unido, e com nacionalidade britânica, o escritor viu-se obrigado a viver nas sombras durante nove anos. Afinal, havia um prémio de mais de 2,7 milhões de euros para quem o matasse. E mesmo alguns dos tradutores com quem trabalhou foram atacados ou mesmo mortos.
Salman Rushdie só reemergiu em 1998 quando o Irão deixou oficialmente de apoiar a fátua que o aiatola tinha emitido em 1989. Ao longo desses nove anos, escreveu sob um pseudónimo: Joseph Anton. Mas ameaças de morte, e a caça ao homem pelos mais extremistas, continuaram e o prémio pelo seu assassinato até foi atualizado para mais de 3,2 milhões de euros. Nada que o autor de “Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Dias” — o romance que escreveu em 2015, a seguir ao livro de memórias “Joseph Anton” — temesse neste momento: “Eu tinha 41 anos na época, agora tenho 71. As coisas estão bem agora. Vivemos num mundo onde o assunto muda muito rápido. E este é um assunto muito antigo. Há agora muitas outras coisas para se temer e outras pessoas para matar”, considerou numa entrevista em 2019.
Mas o assunto não estava esquecido. Salman Rushdie foi esfaqueado entre 10 e 15 vezes momentos antes de iniciar uma intervenção num discurso em Nova Iorque (a cidade onde mora atualmente) e foi atingido no pescoço. Um homem subiu ao palco da Instituição Chautauqua — que no verão organiza tertúlias literárias — por volta das 11h locais (eram 16h em Portugal Continental) e atacou-o com recurso a uma arma branca. Não é clara a gravidade do quadro clínico em que Salman Rushdie se encontra agora.