Nem todas as tormentas fazem barulho, nem tudo o que rasga causa ferida exterior. Há prédios que implodem e a maré que agora está vazia amanhã pode encher e causar devastação. Só porque não vemos uma coisa, tal não significa que a coisa não exista – e o mesmo pode afirmar-se para o que não ouvimos.

À primeira vista (e perdoem o mau verbo escolhido), Pre Pleasure é um disco mais calmo, com menos altos e baixos que Crushing, o disco que fez Julia Jacklin explodir em 2019 e a transportou para o mundo dos grandes festivais, das capas de revista, das entrevistas em catadupa e digressões sem fim. O disco que fez o seu nome entrar naquelas listas de possíveis rainhas do indie-rock (que há muito é encabeçada ora por Angel Olsen, ora por Sharon van Etten).

Uma boa parte do êxito de Crushing deveu-se ao single de estreia, “Pressure to Party”, indie-rock esgalhado, acelerado e propício a invadir o aparelho auditivo, esconder-se no recôndito do cérebro e lá ficar, em loop – aquilo a que Miguel Esteves Cardoso chamava “otoverme”, embora verme tenha um tom depreciativo e, no caso, não seja a palavra que procuramos (talvez otobênção seja mais apropriada).

[ouça o álbum “Pre Pleasure” na íntegra através do Spotify:]

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Mas Crushing abria com “Body”, uma canção lenta, desprovida do êxtase de “Pressure to Party”, que se detinha com uma relação daquelas a que podemos chamar hoje em dia “tóxica”: um voo com um namorado que vai fumar para a casa de banho e acaba preso. A dada altura, Jacklin perguntava-se se o namorado ainda teria certas fotos dela e as usaria para a magoar, rematando, sobre um arranjo de graves de piano: “I guess it’s just my life/ and it’s but body”, num manifesto da impotência que as mulheres sentem perante o uso que os homens fazem do corpo delas, das imagens dos corpos delas.

A própria “Pressure to Party” enganava – não era uma canção de festa, era uma canção de alguém que, após o fim de uma relação, era pressionada a celebrar quando preferia ficar em casa (e se for a uma festa e “ele” estiver lá?). Todo o Crushing era, por baixo das melodias que se aninhavam nas nossas sinapses, um processo de reflexão sobre amores e desamores, as mudanças que as relações amorosas nos provocam, a procura do nosso lugar num mundo confuso e em eterna mudança.

Pre Pleasure pode parecer (à primeira vista, para usar a mesma expressão de há pouco) mais calmo, mas no seu cerne residem as mesmas questões, apenas que colocadas de forma quase (aham) adulta – ou, às vezes descarada:

“I’ve been trying to be turned on by you
be turned on by myself
or anything else
been watching porn
(…)
when pleasure begins my education creeps in”

[“Ignore Tenderness”:]

Assim canta Jacklin em “Ignore Tenderness” – e se há coisa que “Ignore Tenderness” demonstra é que basta uma guitarra em pára-arranca, a voz a cantar as palavras certas e um refrão lindíssimo que sobe para termos prazer.

“Ignore Tenderness” ensina-nos outra coisa: que Crushing era um disco de uma pré-adulta a lidar com as dores acumuladas na juventude; mas Pre Pleasure é um disco de alguém que já viveu alguma coisa, de alguém que decide refletir sobre o que é enquanto olha para os tempos em que era uma desconhecida: estão lá as referências a ser menina bem comportada na escola, à educação católica.

Outra lição de “Ignore Tenderness”: um grande arranjo de cordas faz muito por um refrão – não é que não o soubéssemos, mas é sempre bom recordar. Na extraordinária “End of a Friendship”, com que Pre Pleasure acaba, as cordas regressam no refrão, grandiosas, opulentas, o tipo de arranjo que esperaríamos num disco de Randy Newman ou nos primeiros álbuns dos Tindersticks. É um tremendo final de disco, já agora.

Mas até lá chegar é preciso andar perdido, uma sensação que toda a gente conhece e que, por norma, não é agradável. Logo em miúdos, aprendemos que uma forma de não nos perdermos é decorar pontos de referência, para que a qualquer momento possamos recuperar a orientação. Em “I was Neon”, um indie-rock esgalhado e infeccioso que lembra “Pressure Party”, Jacklin canta “Am I gonna lose myself again  / I quite like the person that I am / Am I gonna lose myself again?”, enquanto um solo de guitarra cheio de ferrugem atravessa o refrão.

[“I Was Neon”:]

Esta é a premissa de Pre Pleasure, um disco em cuja capa Julia Jacklin coloca as mãos numa fotografia de si própria; na foto ela parece em êxtase – Pre Pleasure é o que vem depois do êxtase, a ressaca em que nos questionamos se nos perdemos no caminho. O que obriga, por vezes, a recuar até bem lá atrás: em – “Lydia Wears a Cross”, sob um fundo de caixa de ritmos, um piano pacato, bateria e uma guitarra mansa lá atrás, descreve a sua infância sob a influência da religião:

“I felt pretty
In the shoes and the dress
Confused by the rest
Could He hear me?”

[“Lydia Wears a Cross”:]

Não era a religião que confortava Jacklin (isso confundia-a), era a simplicidade desses tempos.

A humanidade está cheio de discos de ressaca – alguns no sentido literal do termo, escritos após períodos de abusos tóxicos ou etílicos, alguns escritos no sentido amoroso do termo e há toda uma sub-secção de álbuns dedicados ao tema “O que fiz desde que me tornei uma estrela”. Estes, por norma, são aborrecidos: descrições de exageros boémios, destruição de hotéis, mais sexo do que à partida o DNA da pessoa levaria a ser possível, aeroportos – enfim, discos em que o tema acaba por ser propício à auto-indulgência.

Como se costuma dizer, os artistas têm uma vida inteira para fazer as 10 canções do primeiro disco e dois anos para criarem um segundo tão bom ou melhor. Por vezes, e ainda na secção disco de ressaca, isso resulta em obras-primas, como no caso de OK Computer, dos Radiohead, em que Thom Yorke pegou na alienação que sentia (entre aeroportos, hotéis, a obsessão dos fãs, as saudades de casa) e a usou para algo maior (uma reflexão sobre um mundo em processo acelerado de descentralização).

A ressaca de Pre Pleasure está mais próxima da de OK Computer que da habitual indulgência e hedonismo das recém-estrelas – em termos existenciais, não musicais, já no que diz respeito às notas na pauta ela mantém-se mais ou menos dentro de uma folk introspetiva com laivos de indie-rock e um bocadinho mais de piano do que antes.

O facto de ser introspectivo não implica que Jacklin não tenha humor: em “Be careful with yourself”, uma bela malha de indie-rock, orelhuda, ela fornece uma série de avisos a alguém:

“Please stop smoking, want your life to last a long time
When you go driving, would you stick to the limit?

I’m making plans for my future and I plan on you being in it
(…)
When things get too hard, make sure that you’re talking
I know you were raised by the church and encouraged to keep it all in”

Isto até chegar à minha parte favorita:

“Please make sure you have got a little savings
Let’s keep all our doctors appointments, give voice to our doubts
(…)
Ooh, from now on, in you I put all my trust
Now that I know there’s nobody coming to save us”

[“Be Careful With Yourself”:]

É muito curioso o que Jacklin faz aqui: anda um disco inteiro à procura da miúda inocente que era antes da fama, para concluir que não existe Deus, que não existe nenhuma força maior que cuide de nós – por isso ela coloca toda a sua confiança não em si própria mas numa outra pessoa.

Toda esta reflexão e ressaca de Jacklin têm de ser levadas com um bocadinho de desconfiança: ela é exímia a espiolhar as feridas internas e é exímia a usar subtilmente o humor para realçar o absurdo de uma situação. Jacklin pode não saber lá muito bem quem é ou no que se vai tornar, mas tudo estará bem enquanto continuar a entregar discos assim.