Não há luz que não brilhe nos vidros da fachada. E é, depois de sentados, que tal se percebe. Já estamos dentro da casa de campo de Luís (Pedro Lamares), uma das personagens que dá vida a “Estrada de Terra”. A peça escrita e encenada por Tiago Correia, a que chega ao Teatro São Luiz (em Lisboa) esta quarta-feira, dia 21, pelas 19h30, “é uma espécie de ensaio sobre as relações humanas e sobre várias questões complexas”. Mas não se fica por aqui. É também uma descoberta que vai dialogando com o dispositivo.
O início dos 70 minutos que se seguem? Não se sabe. Mas o caminho que se faz até chegar ao final leva-nos a histórias e revoltas que se acumularam durante uma década. Uma viagem a cada fenda humana, com terra batida entre a certeza destemida e a dúvida desmedida.
Com uma coletânea de confrontos silenciosos no primeiro par de minutos, onde dois corpos se exprimem, mas só um tem voz, “Estrada de Terra” é um conflito e o repouso. É um lugar onde as palavras de vida e as palavras de morte se reúnem e difundem. Ver cada ato, rapidamente nos faz chegar à poesia de Mário Cesariny, com um poema em concreto, “You are Welcome To Elsinore” — aquelas não eram as paredes de Elsinore, mas também não se sabe de que terra são.
Atiram o humano para o palco. Acenderam-lhe os cigarros, intercalam com cervejas e cafés. Ouvem-no a berrar, a implorar, a lamentar. Ouve-se o bater de portas, poucos momentos de calmaria, de recordações de sentimentos e emoções evasivas. Sente-se choro, mas não se vê. Examina-se cada palavra, disseca-se quem está do lado de lá de uma chamada e reflete-se cada comportamento a que se observa.
Nesta peça, o amor e a saudade andam de mãos dadas com a violência, o rancor, mesmo que “não devam nada” uns aos outros. A Pedro Lamares juntou-se Inês Curado, André Júlio Teixeira e Sofia Vilariço. E, desta forma, dão palco a um universo cheio de lugares cinzentos onde todos acreditam conhecer o Marco, uma personagem que claramente queremos saber quem é. “Eu também só fui construindo a sua história e percebendo-o à medida que fui escrevendo o texto”, explica o encenador ao Observador.
Regressando ao ponto de partida, o que movia o grupo de amigos e as suas histórias, tudo isto transformou-se em obsessão. Ausente das (des)virtudes da aura citadina, esta peça que se torna tão realista, quanto o dispositivo em que habita, é a continuação de um prólogo que parte de um exercício profundo, onde os artistas trabalham com o encenador. “Nas primeiras três semanas estavam impedidos de decorar o texto”, partilha Tiago Correia.
Pedro Lamares, à direita do encenador, continua dizendo que “tudo começou a partir de estudos, que se entendem como improvisações entre atores, personagens, sempre na base da circunstância, a partir de um determinado dispositivo cénico”.
Perceber o que poderá ter acontecido na noite anterior destas personagens; nas semanas que se passaram e nos anos que não viveram, foi o suficiente para receber as suas angústias e fracassos. Para Tiago Correia, esta peça também é isso: a construção de diversas vivências e experiências suas que não partiam de um evento em concreto, mas conseguia ver em personagens como Marco um alguém específico. Como chegou a escrever anteriormente, é a “tragédia de uma geração” que procura autenticidade.
Dos pingos à liberdade
Os pingos de chuva que se fazem ouvir antecedem-nos das fragilidades, das vulnerabilidades e das ações em palco. O telefone toca. É assim que o primeiro ato cénico se dá. Um homem, alto, robusto, com um olhar que transparece a sua exaustão acorda numa casa que aglomera a sala e a cozinha na mesma divisão. Com um sofá-cama entreaberto, roupas caídas e malas viradas do avesso, é algures pela montanha que se localiza. Atende. É Marco, o amigo perdido há uma década. Sente-se um pedido de ajuda. Ouve-se, eventualmente, pelas palavras de Luís.
Não se aceitam desculpas. Num discurso ritmado, em nada benevolente, Luís repete o nome de Marco vezes sem conta. Não lhe quer “estender a mão”. Pede que o deixe, mas não desliga. Pede-lhe que se afaste, mas diz que é importante ficar. Insiste que precisa de estar sozinho, isolado, confinado ele e o nada. Porém, não está sozinho.
Uma mulher entra em casa e em cena. Percebemos mais tarde que é Leonor. Contextualiza-se com o que ouve da conversa e movimenta-se à medida que a chamada telefónica entre Luís e Marco se mantém. “Há uma tensão muito forte fisicamente, porque como não posso usar a palavra durante todo o caos, ficamos numa zona muito escura”, explica a atriz Inês Curado.
Luís insiste. É sozinho que está e é sozinho que quer ficar. Com uma linguagem dura, solitária e desenfreada arranca e suga. Explode. Com sons e espaços erguidos, as histórias representadas são, por isso, humanas e terrenas.
“Um grupo de amigos muito íntimos que se desfez”
As personagens que Tiago Correia constrói, em simultâneo com os atores que preenchem o elenco, são cruciais para uma narrativa que se adequa às vivências do público. “Elas são quem o espectador quiser que elas sejam”, mesmo que não tenham sido pensadas em problemáticas que envolveram uma pandemia, o burnout ou a evolução do teletrabalho. É neste caminho que o realismo em cena e o abstrato experimental se edificam dando a todo o enredo a humanidade, e o deambulo entre dicotomias que são também fragmentos de um trabalho duradouro. Tão duradouro quanto um exercício académico. Em 2019, Tiago Correia fez uma pós-graduação, como trabalho final da formação na ESMAE, no Porto. O objetivo era transportar este trabalho para palco e mais tarde encenar. Aconteceu em 2021 e voltou a acontecer, agora.
Nesse ano, regressar a um local pelo qual tinha passado e que viria a estar muito ligado com a sua companhia de teatro fez com que um estado de “nostalgia” se construísse. “Com o início da vida artística, com essas relações que se criaram na altura, os sonhos que projetávamos., as coisas todas que queremos fazer”, afirma o encenador.
Depois, volveu o meio profissional.
A peça que existe porque tudo o resto existe
Neste fragmento não há uma dica ou lição moral a reter. Há diversas realidades complexas que nos esbatem contra uma redoma de individualismos: questões como a agressão física e psicológica a uma mulher; a dependência de ligações humanas e sociais e a procura ou, por sua vez, a necessidade de corresponder a uma salvação.
O autor explica ao Observador que havia uma premissa que determina como “formal”. A chamada telefónica. Nela há um diálogo e um “quase” monólogo onde apenas ouvimos uma das partes e, a partir dela, vamos traçando um perfil, uma ideia e uma reflexão de quem será a pessoa que estará do lado de lá.
Entendendo a equipa que permitiu também dar forma a esta peça de teatro, Tiago Correia, recorda-nos que tudo o que vemos é feito de raiz com o “privilégio de uma equipa” que permitiu um resultado como o que pisa o teatro São Luiz, a partir de muitas camadas. “O teatro também é isso, o que é fascinante”.
Da encenação ao elenco, segue-se uma cenografia que ficou a cargo de Ana Gormicho e o desenho de figurinos é da responsabilidade de Sara Miro. O desenho de luz é de Pedro Nabais e o desenho de som é de Vasco Rodrigues. A peça estará em exibição até dia 2 de outubro.