A imagem clássica da crise de meia idade é um homem nos seus 40s ou início dos 50s, que se separa da mulher, que arranja uma namorada mais nova, que passeia no descapotável acabado de comprar. Os filhos estão crescidos, vende-se o carro de família, troca-se o fato pelas roupas de eleição dos membros de faixas etárias mais novas, pinta-se o cabelo e por trás de toda essa renovação, de toda essa recém-juventude, está (na interpretação clássica da crise de meia idade) o desespero de saber que se está a envelhecer, que as rugas já não vão embora, o Viagra está ao virar da esquina e é preciso viver urgentemente os últimos resquícios de não-velhice.

Em tempos idos, todos estes acontecimentos tinham um destino, pelo menos à noite: as boîtes, os cabarés, sítios de vida fácil cuja banda-sonora convidava ao consumo de bebida e de corpos sem se perder tempo a fazer julgamentos morais. De uma forma ou de outra, elementos dessa música foram fascinando as gerações seguintes: de Nick Cave aos Tindersticks, passando pelos American Music Club, muitos adotaram ora arranjos ora trejeitos vocais de música quase de cabaret, fascinados que estavam com a decadência dos estabelecimentos noturnos em que havia sofás de veludo vermelho, espelhos por trás do bar, cortinas polvilhadas a brilhantes e uma bola de espelhos no teto.

É possível que haja uma bola de espelhos em “There’d better be a mirrorball”, a canção de abertura de The Car, o sétimo e mais recente disco dos Arctic Monkeys – ou, se escolhermos outra coluna do Excel, aquela em que se cataloga o género dos discos, o segundo (dizem as más línguas) disco de crise de meia-idade dos Arctic Monkeys. Os artistas duradouros costumam passar por esta fase – os The National estão nela desde Sleep Well Beast, de 2017, e já havia sinais preocupantes em Trouble Will Find Me, de 2013.

[ouça o álbum “The Car”, na íntegra através do Spotify:]

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Mas Matt Berninger, o vocalista, letrista e (de certa forma) guia espiritual dos The National nasceu em 1971 – quando a banda chegou às crises domésticas embaladas em melodias tépidas para quarentões sentados no cadeirão a bebericar whiskey, já Berninger tinha 48 anos (se usarmos Sleep Well Beast como o momento de não-retorno na carreira da banda). Por seu turno, Alex Turner, o líder dos Arctic Monkeys, tem 36 anos e mesmo sabendo que aos 20 anos ele era uma estrela, é difícil aceitar que alguém sem uma hipoteca, ainda com todo o cabelo, magro, possa estar a passar uma crise de media-idade.

Tranquility Base Hotel & Casino, o disco anterior dos Arctic Monkeys, lançado em 2018, foi considerado (pelas más línguas) o primeiro álbum de crise de meia-idade da banda: de repente, os rapazes vestiam-se de fatos e camisa e gravata beige, faziam música que muitos viam como indigna de ser escutada fora de um lobby de um hotel de boomers, cantavam sobre desamores mas sem a urgência da juventude, havia pianos, órgãos vintage, cordas. Para toda uma geração foi – e perdoem a aliteração – uma desilusão.

Quem anda agora pelos trintas olha para os Artic Monkeys como uma das grandes bandas do revivalismo do indie-rock, cheios de malhas infecciosas e um sentido de urgência que só é possível nos vintes (ou quando se é Neil Young). Antigamente, quando as bandas começavam a produzir menos barulho, a queimar menos borracha, acusavamo-las de se terem vendido; hoje é pior: diz-se que estão velhos. E segundo estudos científicos que por mero acaso não tenho aqui à mão para citar, não há, nos dias de Instagram que vivemos, pior insulto que se possa dirigir a outrem do que chamar-lhe velho.

[“There’d Better Be a Mirrorball”:]

Uma mudança de perspetiva poderá ajudar-nos a compreender o generation gap que se abriu entre os Arctic Monkeys e a sua própria geração: alguém nascido nos anos 70 não encara os Monkeys ou os Strokes como a salvação de nada, muito menos como uma inovação – são apenas mais uma iteração do rock malandro. Cada geração tem uma, com as suas características próprias: alguém que haja sido adolescente nos anos 60 terá passado muitas horas a ouvir os Stones ou os Velvet ou os Stooges; os miúdos dos anos 80 ouviam os Fall e os da década de 90 citarão os Nirvana e os Pavement; aos de 2000 calhou que a introdução aos comportamentos desviantes (os copos, as substâncias tóxicas, o sexo) fosse feita através dos Strokes ou dos Monkeys.

Podemos ficar-nos pela música da nossa geração ou usá-la como ponto de partida para toda a outra música – por exemplo, graças aos órgãos Farfisa dos Stereolab descobri a música lounge, aquele tipo de música que serve de fundo em átrios de hotel, no duty free de aeroportos e em certos bares manhosos; com o tempo, fui à procura dos originais e descobri que uma parte deles haviam sido recuperados ou servido de inspiração a bandas recentes, como os já mencionados Stereolab, mas também os St. Germain. A mesma música conseguia estar presente de forma diferente nestas duas bandas ou nos Tindersticks ou em Nick Cave, para não sermos exaustivos.

E agora essa mesma música serve de inspiração aos Arctic Monkeys, que sempre se esforçaram para parecer rapazes tesos, do ruóque, mas que aqui e ali deixaram pistas para o que viria mais tarde: nos Last Shadow Puppets (outra banda de Alex Turner) havia cordas e decadência em barda; “I wanna be yours” (extraordinária canção dos Monkeys) era hiper-romântica, bordeline lamechas, propícia a slows aos pares e que não cairia mal em nenhum bar fajuto de engate.

[“Body Paint”:]

O assumir desse som como fonte primordial do novo som dos Monkeys, tanto em Tranquility Base Hotel & Casino como agora em The Car, há-de corresponder a uma qualquer vontade de Turner em não se repetir, mas também decorrerá de ele não ter ficado quieto a ouvir apenas os discos que o emocionaram na adolescência – é notório que o amor a este som é sincero, embora os Monkeys usem toda a iconografia (as roupas de chulos, os cabelos puxados para trás, os sapatos, as bolas de espelhos) com a ironia e a sabedoria que a distância temporal permite.

Talvez a geração dos Monkeys não tenha crescido com um Nick Cave ou uns Tindersticks nas suas fases decadentes – certamente o valor da decadência caiu desde a saga de heroína+sida dos anos 80 e 90. Mas – e perdoem o paternalismo – talvez mais uns anos, uma hipoteca e um divórcio e estavam preparados para apreciar uma canção como “There’d better be a mirrorball”, com a melodia de cordas em fundo, o ocasional piano, o ritmo lento a lembrar os Blue Nile se estes fizessem música de cabaret. As cordas, lindíssimas, vêm do fundo para cima, como pequenas labaredas numa fogueira mansa e imaginamos um casal de meia idade, até então desconhecido, a dançar, muito juntinhos, no meio da pista do raio do bar de má fama que já inventei para este texto umas 15 vezes.

As cordas estão por todo o lado, não com aquele negrume das dos Tindersticks, mas com a cor das pequenas tragédias: a tragédia da solidão, do engate manhoso que só serve para tentar esquecer que se falhou o casamento, a tragédia de vestir um fato beige e puxar o cabelo para trás com gel para parecer cool e só se conseguir ficar com ar de figurante num plano de um episódio menos conseguido dos Sopranos.

[“I Ain’t Quite Where I Think I Am”:]

Pode custar aos millenials, mas Turner tornou-se um homenzinho – e um homenzinho capaz de (apesar de dois ou três temas que apesar de terem nascido agora podiam muito bem retirar-se para o lar de idosos) fazer um disco em sumptuoso crescendo, com a espantosa sequência final composta por “Big Ideas”, “Hello you” e “Perfect Sense” (se esquecermos a chatinha “Mr Schwartz”, que antecipa o final) repletas de cordas luxuosas, os teclados vintage com aquele charme de piano queimado por beatas e aquele tipo de ritmo desenhado para encostar ancas de desconhecidos.

The Car é um disco tão bonito que se sai dele com a vontade de passar por um divórcio, mudar o guarda-roupa, beber demais, fazer figuras ridículas à noite, acordar com alguém que nunca vimos antes e sentir culpa e sair a correr antes de ir almoçar com os filhos. Não lamentem a crise de meia-idade de Alex Turner, aceitem-na, aceitem que também chegará o vosso momento. E quando chegar, esta será a banda-sonora da vossa vida.