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"Sun & Sea": a beleza insuportável de suster o último suspiro da Terra

Este artigo tem mais de 2 anos

Uma ópera moderna que passa primeiro pelo Porto e depois por Lisboa, para mostrar em que estado estamos e para onde podemos tragicamente ir. Falámos com as três autoras lituanas do espectáculo.

Ao vermos "Sun & Sea" quase que vemos as nossas fotografias de férias, as últimas, aquelas que foram mais ou menos memoráveis
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Ao vermos "Sun & Sea" quase que vemos as nossas fotografias de férias, as últimas, aquelas que foram mais ou menos memoráveis

Andrej Vasilenko

Ao vermos "Sun & Sea" quase que vemos as nossas fotografias de férias, as últimas, aquelas que foram mais ou menos memoráveis

Andrej Vasilenko

Não se sente a brisa, mas ouve-se o som da rebentação das ondas. O mar, os gritos pontuais das crianças, risos (muitos risos) e o chegar de uma carrinha de gelados ao longe. Todos estes sons ecoaram num armazém isolado, na Lituânia; inundaram uma piscina abandonada, em Berlim; pisaram uma academia de música, em Brooklyn; e percorreram uma arena grega. Agora, “Sun & Sea” destina-se a ocupar o palco do Rivoli, no Porto, (4 e 5 de novembro) e ruma até à Culturgest, em Lisboa, no âmbito do Alkantara Festival (11 e 12 de novembro).

Aqui, a praia é feita de palavras, mas o fim do mundo não é menos exuberante do que dias de sol e descanso numa das maiores costas e destinos tropicais do planeta. A ópera moderna da realizadora Rugilė Barzdžiukaitė, a escritora Vaiva Grainytė e a compositora Lina Lapelytė, dá corpo a uma inseminação de fragmentos furiosos, nada dispersos e quase partilháveis, (de)compostos numa coletânea de imagens, como se fossem as nossas fotografias de férias, as últimas, mais ou menos memoráveis.

“Sun & Sea” resulta das preocupações de uma realizadora, uma escritora e uma compositora que “deixaram as cadeiras de praia” e, a partir de “uma perspetiva cósmica” a que o Museu Guggenheim, em Nova Iorque, lhes despertou, decidiram criar uma pequena versão da performance, na Galeria Nacional de Vilnius, na Lituânia, em 2017.

Dois anos se seguiram. A inquietação ecológica — tanto quanto a desordem tecnológica — transformou aquela que era uma “pequena versão da ópera lituana” num site specific que coabitava num pequeno armazém, na Bienal de Veneza, em 2019. Valeu-lhes um Urso de Ouro e uma digressão mundial.

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É nesta transformação de climas, espaços, pessoas, novos olhos e ouvidos que o trio artístico se distingue. Além de um estilo musical altamente diversificado — que parte da ópera contemporânea e pisa territórios além da música eletrónica e do pop moderno –, a forma como o público se relaciona com obra, a partir de uma plateia suspensa, é a metáfora que poucos esperam. Torna-se assim um lugar onde “a beleza” e a “catástrofe” andam lado a lado, percorrendo histórias e mergulhando em direções cada vez mais próximas de um precipício.

Esta é uma ópera moderna, assinada pela realizadora Rugilė Barzdžiukaitė, a escritora Vaiva Grainytė e a compositora Lina Lapelytė

Andrej Vasilenko

“Por vezes, basta subir um nível ou dois, mas para nós é importante este efeito, em perspetiva, onde vemos diferentes espécies humanas à distância e podemos identificá-las como algo que nos é distante”, começa por explicar Rugilé Barzdžiukaitė ao Observador. “A ideia inicial era criar um ângulo desumanizado”.

Com um elenco composto não só por cantores como também por pessoas das comunidades locais, ouvem-se canções do quotidiano, canções de preocupação e aborrecimento, “canções de quase nada”. A eles juntam-se as dezenas de intérpretes musicais integrados na obra como é o caso de Evaldas Alekna, Elena Alymova, Claudia Graziadei, Nabila Dandara, Kalliopi Petrou, entre outros.

O corpo dança com as suas fragilidades e a esta melodia juntam-se outros dois tópicos, dando alicerces a este objeto final: a abordagem de um consumismo e capitalismo extremo que relativiza o colapsar de uma Terra exausta, num último suspiro.

“Nada é demasiado sombrio na nossa peça”, destaca Vaiva Grainytė ao conversar connosco por videochamada. No entanto, é certo que se canta sobre as geadas inexistentes nos meses de inverno; sobre meses de maio “sobreaquecidos” e sobre preocupações que, na expetativa natural destas mesmas vivências, previam que todos parassem o que estão a fazer para se concentrar no ponto de viragem, de ação e luta. Mas isso não acontece.

Deixou de ser clara a ideia de que o mundo acaba num cenário apocalíptico com sons sustentados pelo medo. Não é com a queda de um asteróide ou de um inverno incomensurável, mas num dia de praia, nesta em particular, no auge do verão. Evocativa e assustadoramente relacionável, “Sun & Sea” é um retrato subtil, mas devastador, da benevolência humana.

Em contrapartida, a música que parte da base desta criação é, conceptualmente, de leveza: “É quase brilhante demais para suportar. É uma leveza insuportável”, destacam as duas artistas que, numa conversa de curta duração, tinham longas palavras a acrescentar.
Todos os elementos principais, incluindo a música, seguem essa estrutura. “A praia reflete as nossas vidas — nós também pertencemos a este mesmo ciclo consumista. Então a música tenta ser como uma música pop que parece vir do passado, mas que na verdade não vem”.

Considerando o preço do prazer – e o problema de contar com a inevitabilidade — o espetáculo leva-nos a percorrer melodias que se (de)compõem com personagens cujas histórias se fundem num retrato de uma crise climática. E, por isso, as artistas lançam uma reflexão que se revela unânime: atender à questão de uma realidade próxima de fim do mundo desvanece nas tantas coisas que acontecem no tempo entre si. Quem frequenta aquela praia canta solos, duetos, alguns deles interrompidos por crianças, objetos ou muitas outras coisas que se tornam ruído. Ruído para pensar, para ouvir, para entender coletivamente.

Os banhistas leem etiquetas dos protetores solares, ditam experiências em recentes viagens, contrastam a cor das suas toalhas e bebidas brilhantes com a das suas peles.

"Sun & Sea (Marina)" destaca-se pelo reconhecimento de que a arte pode colocar o público em contacto com as realidades que eclodem a partir dos seus comportamentos

Andrej Vasilenko

Esta estrutura secundária, bem como a sua repetição, é central para a força da criação, que olha para as alterações climáticas de forma não direcional, ainda que imersiva. É então que o elenco completo canta um refrão em que invoca e grita por mudança. Desde o “mamute que, oficialmente, é uma criatura não existe, mas que é uma espécie que se reproduz ao mais alto ritmo” à “Eutrofização”, onde “os nossos corpos estão cobertos por um velo verde escorregadio e os nossos fatos de banho se enchem de algas”.

Se a música pode ser “interessante de forma a deixar uma porta entreaberta entre as personagens”, Grainytė não deixa de ressalvar uma outra característica que considera ser relevante: “ela [música] carrega certas dimensões emocionais e, o mais curioso desta performance é que as cantoras e cantores não têm de agir antes de cantar, mas sim sentir”.

Tal como as vozes e corpos que se vão construindo num suspiro vagaroso “lançado pela Terra”, a performance transporta uma conscientização artística sensorial. Seja qual for a sua eficácia na sensibilização ambiental, “Sun & Sea” destaca-se pelo reconhecimento de que a arte pode colocar o público em contacto com as realidades que eclodem a partir dos seus comportamentos.

Visto de cima, quase como se partisse de uma atmosfera paralela ou de um recanto místico, como deuses de uma criação a que assistimos, a distância que continuamos a vivenciar enquanto somos convidados a entrar e a sair de “Sun & Sea” não deixa margem para dúvidas, colocando a catástrofe em segundo plano, tornando-se alheia aos protagonistas. É então que nos questionamos: “como poderíamos estar tão confiantes de que a natureza suportaria todas estas calamidades”?

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