“A Gal Costa sempre me trata com choques elétricos. Eu chego para ver ela e não vejo ela, me arrebato por ela, e me arrebento por ela, me desarrumo por ela”, descreveu assim o músico Tom Zé, certa vez, a “muito maravilhosa” Gal tropical.

Foi voz de anjo e sex symbol do Brasil, figura feminina revolucionária (da canção, dos comportamentos e das convenções de género) e, divina maravilhosa, arquétipo da mais genial música popular brasileira por fim. Gal Costa, nascida Maria da Graça Costa Penna Burgos, morreu esta quarta-feira de manhã, com 77 anos, confirmou a Folha de S. Paulo junto da assessoria de imprensa da artista. Não foi, para já, adiantada a causa da morte.

Gal Costa era um dos nomes do cartaz do festival Primavera Sound de São Paulo, mas a sua atuação prevista para o fim de semana foi cancelada em cima da hora. A cantora tinha sido operada há três semanas a um nódulo na fossa nasal direita e encontrava-se a recuperar. Previa-se que ficasse longe dos palcos até novembro, tendo cancelado todos os compromissos até lá, chegara a informar a equipa da artista.

Há cinco anos, em entrevista ao Observador, Gal Costa descrevia-se a si mesma em jeito de resumo de percurso: “Não gosto de me acomodar, gosto de mudar, de ousar, acho que tem que se ter coragem para ser ousada. E eu sempre tive. As mudanças na carreira não é questão de as coisas ficarem chatas, é porque eu sou inquieta mesmo”.

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Gal Costa: “Tem que se ter coragem para ser ousada. E eu sempre tive”

Lula lembra “uma das maiores cantoras do mundo”

A morte já foi lamentada pelo vencedor das últimas presidenciais do Brasil, Lula da Silva. Já Jair Bolsonaro, o mais recente Presidente do país e que foi derrotado nas últimas eleições, ainda não reagiu. Através das redes sociais, Lula partilhou uma fotografia com a cantora e apontou: “Gal Costa foi uma das maiores cantoras do mundo, das nossas principais artistas a levar o nome e os sons do Brasil para todo o planeta”.

Seu talento, técnica e ousadia enriqueceu e renovou a nossa cultura, embalou e marcou a vida de milhões de brasileiros”, acrescentou Lula.

Também o músico Gilberto Gil, através da rede social Twitter, deixou uma mensagem: “Muito triste e impactado com a morte de minha irmã Gaúcha Gal Costa”. Posteriormente, Gil deixou uma mensagem mais longa no Instagram, referindo: “Nossa irmãzinha se foi… Gal, a quem chamava de Gaúcha”.

Fica a saudade para mim, para todos que eram próximos dela e para tanta gente na extensão deste Brasil imenso que se encantava com o canto dela. Agora o canto dela fica connosco para o resto das nossas vidas, para o tempo todo da nossa história”, acrescentou Gil.

A cantora Rita Lee reagiu também através de uma publicação no Instagram. Partilhando uma fotografia antiga com Gal Costa, escreveu na legenda, fazendo referência a um dos temas mais conhecidos da cantora, “Meu Nome é Gal”: “O nome dela é Gal, a garota da voz de veludo…as forças de luz estão com você…”.

A partir de Portugal, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deixou já uma mensagem expressando “sentidos pêsames” à família e amigos de Gal Costa, que Marcelo lembra “com saudade”. O Presidente português recorda que “com outros brilhantes baianos, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia”, Gal “construiu uma das obras mais ricas e diversas da música popular brasileira“.

Além de inúmeros prémios brasileiros, venceu também o Grammy Latino para o conjunto da obra. Em 1975, Portugal ouviu-a no genérico da novela «Gabriela», que parou o país. E nunca deixámos de comprar os discos e de comparecer aos concertos, os últimos dos quais, marcados para este mês, o seu desaparecimento impediu, ficando a eterna lembrança de meio século de canções”, refere também Marcelo.

Uma figura preponderante do pós-bossa nova, nuns 60’s e 70’s fervilhantes

Nascida em Salvador da Bahia, em 1945, pouco mais de três anos depois do seu conterrâneo Gilberto Gil, Gal Costa viria a fazer parte de uma geração nascida na década de 1940 que mudou e moldou a música brasileira no pós-bossa nova, sucedendo a uma geração de músicos nascidos nas duas décadas anteriores como Tom Jobim (1927), Johnny Alff (1929), João Gilberto (1931), João Donato (1934) e Baden Powell (1937).

Três anos mais nova do que Caetano Veloso e Gilberto Gil, um ano mais nova do que Chico Buarque, nascida no mesmo ano de Elis Regina, um ano mais velha do que Maria Bethânia e dois anos mais velha do que Rita Lee, Gal Costa começou a projetar-se ainda nos anos 1960, década em que se mudou da Bahia para o Rio de Janeiro.

A sua primeira gravação em disco ouviu-se no álbum de estreia de Maria Bethânia, homónimo e editado em 1965, dois anos depois de Gal ter sido apresentada àquele que viria a ser um dos seus parceiros musicais mais regulares daí em diante: Caetano Veloso, precisamente irmão de Bethânia e também em começo de carreira musical. Nesse álbum de 1965, Gal Costa cantaria no tema “Sol Negro” (escrito por Caetano Veloso), surgindo nos créditos ainda com o seu nome de batismo, Maria da Graça.

Sobre esse encontro com Caetano Veloso e a relação musical que por essa altura começava, e que duraria até final da carreira de Gal Costa, a cantora recordou recentemente: “Eu e Caetano temos uma identidade, uma ligação com música. O facto de ele compor tão bem para mim deve-se à paixão que a gente tem pela música de João Gilberto”.

Logo quando nos conhecemos, ele gostou do meu jeito de cantar, gostou de mim, pediu o violão, mostrou-me uma música dele, e eu cantei. Então a gente tem afinidade musical, é uma questão misteriosa, de integração mesmo.”

Depois de participar no I Festival Internacional da Canção Popular, em 1966, no Rio de Janeiro — que seria vencido por Nana Caymmi, interpretando “Saveiros”, canção da autoria do seu pai Dorival Caymmi e de Nelson Motta —, Gal Costa lançaria no ano seguinte o seu primeiro álbum de estúdio, um disco partilhado com Caetano Veloso intitulado Domingo. Curiosamente, foi também o primeiro álbum de estúdio editado pelo músico nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia.

Ainda na década de 1960, participou na gravação de um dos álbuns mais importantes da segunda metade do século XX no Brasil, Tropicalia ou Panis et Circencis (1968). O disco juntou uma série de figuras da então contra-cultura brasileira ligada ao tropicalismo. Entre os músicos que o gravaram estavam, além de Gal Costa, Tom Zé, a banda Os Mutantes, Nara Leão, Gilberto Gil e Caetano Veloso, secundados pelo maestro e arranjador Rogério Duprat e pelo poeta, jornalista e letrista Torquato Neto.

Nesse álbum, Tropicalia ou Panis et Circensis, Gal Costa cantou temas como “Parque Industrial” (composta por Tom Zé), “Mamãe, Coragem” (autores: Caetano Veloso e Torquato Neto) e, em dueto com Caetano, o sucesso “Baby” (escrita por Veloso). Esta última seria incluída no primeiro álbum a solo editado por Gal Costa, homónimo e lançado em 1969 — a par de outros temas como “Divino Maravilhoso” e “Que Pena (Ele Já Não Gosta Mais de Mim)” — e acabou por ser reinterpretada recentemente pela cantora em dueto com o jovem músico brasileiro Tim Bernardes.

Depois desse primeiro disco em nome próprio, Gal Costa nunca mais deixaria de editar álbuns e dar concertos, fazendo da música a sua vida. Ainda em 1969 editou o segundo álbum, Gal, que incluía a já referida “Meu Nome é Gal” (canção composta por Roberto e Erasmo Carlos) e “Cinema Olympia”, que lhe foi cedida por Caetano Veloso.

Na década de 1970, edita discos como Legalresultado de uma passagem por Londres, onde Caetano Veloso e Gilberto Gil viviam exilados devido à situação política no Brasil, como atesta a canção “London, London” —, o álbum ao vivo Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, que revelou canções como “Vapor Barato” e “Pérola Negra”, e, em 1973, Índia, este dirigido por Gilberto Gil. Este último álbum, e a canção que lhe dá título, estão diretamente associados à alcunha com que ficaria: índia da MPB.

Sobre o início dos anos 1970, afirmou Gal Costa, em 2017, em entrevista ao Observador: “Na época da ditadura e da prisão de Caetano e Gil, fiquei aqui defendendo o tropicalismo. Fazia rock, música experimental, isso tudo tem a ver com a minha história”. E sobre Gil, particularmente, contava: “O dia em que conheci Gil foi uma felicidade. Adorava-o. Tornámo-nos amigos, irmãos espirituais, temos ali uma proximidade, de abraçamento perto um do outro. Parece que foi tudo tramado pelo universo. Parece não, foi”.

Por esta altura, nos anos 1970, Gal Costa era já uma das principais intérpretes e figuras da música brasileira, editando ainda, em 1976, discos como Gal Canta Caymmi e o álbum ao vivo Doces Bárbaros, resultante de um projeto musical e coletivo com o mesmo nome de que Gal fez parte, com Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Depois disto, na mesma década, Gal teria ainda sucesso com os discos Caras & Bocas (1977), Água Viva (1978) e Gal Tropical (1979), que incluíam canções como “Força Estranha”.

A carreira prosseguiria nos anos 1980, com canções como “Meu Bem, Meu Mal” (recentemente regravada) e com discos como Fantasia e Bem Bom (que incluía um dueto com Tim Maia, “Um Dia de Domingo”). A década seguinte seria de menor produção discográfica, mas nos últimos 20 anos Gal Costa manteve-se bastante ativa, editando vários álbuns novos — sete de estúdio nestas últimas duas décadas, a que se somam discos ao vivo como Trinca de Ases, de 2018 — e colaborando com vários músicos da nova geração da canção brasileira.

Para a sua última edição discográfica em vida, Nenhuma Dor, revelada em 2021, Gal Costa gravou uma série de duetos, com autores e intérpretes brasileiros de gerações posteriores à sua como Rodrigo Amarante, Silva, Criolo, Rubel, Zeca Veloso (filho de Caetano), Zé Ibarra e Seu Jorge e com o músico português António Zambujo.

Alguns destes músicos mais jovens reagiram já à sua morte, nas redes sociais. No Instagram, António Zambujo partilhou uma fotografia da cantora com a legenda “Gal, obrigada por tanto”. Já o brasileiro Zé Ibarra, que integra a banda Bala Desejo e que é considerado um dos grandes talentos da nova geração da Música Popular Brasileira (MPB), escreveu um texto longo intitulado “Te amo Gal”, no qual lembrava “a voz límpida”, “o cinema das melodias perfeitas”, a “atitude revolucionária” e a “beleza venenosa” da cantora, revelando ainda um vídeo de um dueto dos dois em palco a cantar o tema “Baby”.

Esta admiração de que foi alvo, por músicos da sua geração e de quase todas as gerações posteriores da canção popular brasileira, não deixa margem para dúvidas: a indomável voz de Gal Costa resistiu ao tempo, renovou-se e regenerou-se aos ouvidos do Brasil e do mundo sem perder o brilho, é hoje homenageada transversalmente. E será sempre cedo para que se cante que já chega de saudade.