Bem sei que o Natal, no Brasil, acontece no verão e nem por isso fazem presépios rodeados de palmeiras nem põem o Pai Natal a descer por um escorrega de água em vez de uma chaminé. Bem sei que o tempo é relativo ao espaço e que cada lugar do mundo vive cada época à sua maneira e que nenhuma está mais certa do que outra. Mas o Mundial do Qatar acaba de substituir, oficialmente, o Carnaval de Ovar na lista de anacronismos difíceis de engolir.
Sim, pior do que desfilar seminu debaixo da chuva de fevereiro com ar sensual, é tentar acompanhar um Mundial de futebol em pleno horário de expediente, entalado entre as gripes do Outono e as compras de Natal. Isto enquanto os jogadores que, ainda há uma semana, trabalhavam ao serviço dos seus clubes, tiveram de deixar as competições a meio para irem jogar num país com menos habitantes do que a Grande Lisboa (talvez até menos do que a pista do Jamaica, sexta passada) e que parece ter montado um Mundial da mesma maneira que a FIL monta a feira do artesanato – aquilo amanhã já pode ser outra coisa qualquer.
E como se não bastasse, para quem ainda vacilasse sobre se deveria tentar acompanhar os jogos sob risco de despedimento, numa competição obviamente submetida a interesses que nada têm a ver com o jogo, veio o Presidente da República tirar-nos as dúvidas e apelar a que nos concentrássemos no que importa, a bola, e esquecêssemos as questões dos direitos humanos, da falta de condições de trabalho dos operários, de vida das mulheres e comunidade LGBT, falta de transparência do regime qatari e da própria FIFA.
[o trailer de “FIFA: Futebol, Dinheiro e Poder”:]
Dito isto tudo, não há talvez melhor sugestão do que “FIFA: Futebol, Dinheiro e Poder”. De acordo que o título tem a criatividade da bula de um xanax, mas a nova minissérie documental da Netflix é a forma ideal de acompanharmos o Mundial sem vermos o Mundial. De perceber o que está a acontecer sem ter de ver o que está a acontecer. De estarmos sintonizados com o tema e os protagonistas do momento, sem nos sentirmos sujos nem tontos. E, é claro, de evitar o drama do fear of missing out.
“FIFA Uncovered”, no título original, é daquelas histórias que não nos conta exatamente nada de que não soubéssemos ainda, mas que nos faz o favor de ligar os pontos. Não é daquelas a que nos prendemos pelo disparo de dopamina dos “ahás!”, mas pelo dos “eu bem sabia…” Do primeiro Mundial de João Havelange, na Argentina, em 1978, decidido a 500 metros do mesmo lugar onde a ditadura militar torturava e executava os seus opositores, às vésperas da copa do Qatar e à ascensão de Gianni Infantino (já lá vamos), estes quatro episódios que se consomem como um page turner irresistível afixam no placard de cortiça os nomes, os rostos e as ligações que transformaram a FIFA numa organização criminosa e o Mundial de futebol na moeda de troca vendida por 24 sobas dos bastidores da bola, disponíveis para amar o primeiro regime podre que lhes acene com uns milhões para o facelift.
Os paralelos com os Jogos Olímpicos de 1936 na Berlim de Hitler são constantes – e como arrepia ver agora Putin receber a organização do Mundial de 2018 e não ter percebido, então, a gravidade do que estava em causa (a História repete-se e, com efeito, não aprendemos nada). “Fifa: Futebol, Dinheiro e Poder” vai desmontando a teia por detrás de alguns dos momentos mais felizes da vida de um adepto do futebol. Como campanhas com as causas e as palavras certas, apontadas ao que os valores do desporto poderiam fazer pelo desenvolvimento humano em África, no Brasil ou no mundo árabe, e como até figuras como Nelson Mandela foram usadas para a verdadeira modalidade aqui jogada: hipocrisia de alta competição (se quiserem ser trendy, diga Sportwashing).
Com entrevistas a jornalistas, investigadores, familiares, antigos consultores e advogados da FIFA e a alguns dos verdadeiros protagonistas deste policial com mais de 40 anos, como Jérôme Valcke, antigo secretário-geral da FIFA, Joseph Blatter, antigo tudo na FIFA, e Gianni Infantino, o novo _________ [preencha o espaço em branco] da FIFA, a série explica-lhe, devagarinho, porque é que quem joga à bola são os latino-americanos e os europeus, mas quem manda nele são um norte-americano, um caribenho, uns árabes e uns suíços (essa espécie muito sui generis de europeu). De brinde, ainda fica a perceber porque é que o Qatar também é dono do Paris Saint-Germain.
E, se tudo é inacreditavelmente sujo e falso neste jogo, não deixa de ser literário perceber como toda esta gente se vê como pertencendo mesmo ao mundo do futebol e não como aquilo que realmente é: uma carraça, um vírus instalado no corpo do hospedeiro que acabará por matar se não for eliminado a tempo. Vejam-se as comparações de Blatter entre a sua fisionomia e a de Messi, os jogos de solteiros e casados entre os figurões da FIFA com Havelange a jogar com o número 10; o campo de futebol desenhado no chão da sala de reuniões do comité executivo da FIFA. São uns putos que, como todos os outros, sonharam ser craques da bola, mas a quem não faltava apenas o jeito nos pés; faltava também uma coluna vertebral.
E se Blatter mantém aquele ar de bom velhinho a quem ajudaríamos com os sacos no mercado e o falecido Havelange enganava com a altivez de rei que alguém, a dado momento, lhe reconhece, temos agora Infantino, canastrão que iria mal como vilão na peça da escola.
Resta-nos continuar a tentar ver futebol num mundo onde, ainda mal a investigação do FBI tinha removido o tumor, já aparecia a recidiva. Onde Qatar e quejandos vão continuar a comprar clubes e torneios e Marcelo a dizer coisas. Porque, no fim, a Arábia Saudita até pode mesmo ganhar a Argentina e isso ser legítimo. Ser futebol.
Nota final para os autores do documentário, contra o netflixianismo que tenta fazer tudo passar por produto com selo de fábrica. “FIFA Uncovered” é escrito por Miles Coleman e realizado por Daniel Gordon, especialista em documentários ligados ao universo do futebol, autor de “The Game of their Lives”, acerca da nossa bem conhecida participação da seleção da Coreia do Norte no Mundial de 66, e anteriormente já nomeado a um Emmy por “30 for 30: Soccer Stories” e a um Bafta por “Hillsborough”.