Joel Golby, colaborador do jornal britânico The Guardian, escrevia há uns tempos sobre os atrasos de algumas séries norte-americanas na hora de chegar à televisão no Reino Unido. O artigo, escrito a propósito da estreia de “How To With John Wilson” (por cá disponível na HBO Max), refletia sobre os quase dois anos de espera e de como este período parece coisa arcaica num momento em que quase tudo chega via plataformas de streaming. O Reino Unido é um caso particular – não tem HBO Max, por exemplo – e há muitas séries que ainda se estreiam na televisão “normal”, à hora marcada. Em Portugal, desabituámo-nos a isso, mas ainda há momentos que nos fazem pensar “alguma vez voltaremos a este modelo?”. “Gaslit” é a protagonista de mais um desses momentos. A série estreia-se esta terça-feira, dia 22, pelas 22h10, no TV Cine Emotion.
Oito episódios, um por semana, sempre à mesma hora. Mas qual a novidade aqui, quando ainda há tantas séries a estrear noutros canais a todo o momento? Bom, “Gaslit” é daquelas minisséries com tempero de produção do ano. Ou, se não gosta de classificações maximalistas (ou perto disso), diga-se então que tem uma daquelas histórias que é um regozijo acompanhar. Começa tudo pelo tema: o escândalo Watergate.
Tal como muitas das séries em volta de escândalos estreadas nos últimos dois anos, “Gaslit” é uma adaptação de um podcast. “Slow Burn”, criado pelo jornalista Leon Neyfakh, é um produto da revista digital Slate, que teve início em 2017. Já vai com sete temporadas, cada uma delas dedicada a uma história controversa norte-americana, desde a rivalidade entre Notorious B.I.G. e Tupac Shakur, o caso Clinton-Lewinski ou a história de David Duke, figura de relevo no contexto do regresso da “supremacia branca” em território norte-americano. Watergate foi a primeira temporada do podcast, evitando os lugares-comuns do caso e tentando concentrar-se nas histórias menos contadas.
[veja o trailer de “Gaslit”:]
Eis “Gaslit”, a versão menos reportagem dessa história, ou seja, a adaptação para entretenimento. Com um elenco de luxo encabeçado por Julia Roberts e Sean Penn, e ainda com Dan Stevens, Shea Whigham, Betty Gilpin, Chris Bauer, Allison Tolman e Darby Camp.
Nixon está sempre no centro, mas Nixon está também presente em modo “cenário de fundo”. Ou seja, Nixon não está presente, mas omnipresente. Afinal, isto é sobre ele. Sobre o envolvimento do antigo presidente americano no caso Watergate e sobre todas as manobras que aconteceram nos bastidores dos bastidores. É muito menos sobre os resultados, a investigação, é muito mais sobre a ação em si, aliás, muito sobre a pré-ação: o que fez com que tudo aquilo acontecesse?
As luzes estão em cima de Julia Roberts enquanto Martha Mitchell, a mulher do procurador-geral de Nixon, John N. Mitchell (Sean Penn), que chegou a estar envolvida no caso de uma forma bizarra ou, melhor, extrema: foi raptada. “Gaslit” concentra-se na personagem pelo papel de denunciante. Por achar que estava sempre a ser secundarizada pelos restantes políticos e as suas mulheres, Mitchell falava de mais à imprensa. Era daquelas pessoas inconvenientes, sem filtro. Mitchell usava isso para ter a atenção que lhe achava merecida, os jornalistas usavam-na não por terem interesse, mas porque é o tipo de material que vende. Os políticos não se sentiam confortáveis ao seu lado.
Martha foi a primeira pessoa a falar do envolvimento de Nixon no caso. O resto é história. Criada por Robbie Pickering e com os episódios todos realizados por Matt Ross — mais conhecido pelas suas funções de ator — “Gaslit” pega no caso Watergate com o nível de demência certo. Afinal, eram os 1970s, houve muita coisa pouco sã a acontecer, muita experiência militar absurda, no limiar do credível, que anos mais tarde se viria a revelar como verdade. Pickering e Ross não perdem tempo a situar o espectador nessa realidade, fazem-no logo no primeiro episódio, através de G. Gordon Liddy (Whigham), um antigo agente do FBI que é contratado para ter ideias que consigam sabotar os planos dos democratas.
Mas estas ideias roçam o ridículo. Muitas delas são questionáveis mesmo tendo em conta o que entendemos como direitos humanos. E foram o início de um movimento inevitável e imparável, uma espécie de bola de neve que levou a que Gordon Liddy ficasse como uma das caras do caso que levaria ao Watergate. As ideias absurdas de Liddy fazem o contraponto face à vida quotidiana do casal Mitchell, num potencial momento de rutura devido à vontade de Martha ser aceite dentro da sociedade do marido.
Como outras séries que têm saído do forno dos podcasts, esta também tem os ingredientes certos nas doses certas. É verdade que segue uma fórmula e isso pode deixar muita gente desconfiada — porque as fórmulas costumam atingir um ponto de saturação. Mas “Gaslit” encaixa na perfeição neste modelo de minissérie. Por falar em vantagens, uma outra: o facto de a realização estar entregue a duas mãos e uma cabeça. Uma entrega bem escolhida, com Matt Ross a conseguir atribuir uma unidade ao todo e a saber dar uma toada de humor quando esta é exigida. É impossível não olhar para Liddy – que, já agora, tem em Whigham uma escolha impecável de casting – e sentir acidez misturada com pontadas de loucura justificáveis.
“Gaslit” é boa televisão para ver na televisão. Isto não é saudosismo, não desejamos regressar a velhos hábitos, de missões a horas certas. Mas é sempre bom ter uma desculpa para voltar ao local onde aprendemos a fazer tudo isto.