Em 2022 não devia ser necessário iniciar uma conversa sobre um disco (Blue Rev, dos Alvvays, posso desde já avançar) lembrando as normas implícitas de debate civilizado – nomeadamente que o valor de uma obra de arte é subjetivo e depende da ligação emocional que estabelecemos com o autor e o (em linguagem comercial) produto.

Músicos, etno-musicólogos e professores terão argumentos de outra ordem para provar que este trecho de música é de uma complexidade inalcançável, que determinado andamento de certa sinfonia só é possível graças a um virtuosismo porventura até então nunca ouvido, que à luz da História esta sequência de notas constituiu uma inovação de tal monta que ainda hoje os ecos de tão inusitada inspiração se fazem sentir.

Mas por entre a estupidamente complexa sequência de eventos que torna cada um de nós aquilo que é hoje, aos ouvidos menos sofisticados do ouvinte de música pop, uma coisa é boa quando mexe com as placas tectónicas em que a nossa estabilidade emocional assenta (ou quando nos arrebita a anca), e é má quando nos lembra empadão. O gosto educa-se, dizem, o que pressupõe a existência de uma educação tabelada, considerada a correta. Porém, em criança eu não gostava de nabos e hoje adoro; não suportava disco-sound e hoje maravilho-me a cada redescoberta. Nos tempos em que colocava os Joy Division num altar não imaginava que um dia iria apreciar Daddy Yankee ou Rosalía.

[“Very online guy”:]

Nós mudamos, a música muda, a nossa opinião sobre a música muda – a maior parte da música que ouvia na adolescência não me interessa, porque me aborreço depressa, mas ainda sou fanático pelos Pavement, pelos My Bloody Valentine ou certos discos dos Stereolab. E esse amor regressa, por vezes, sob outras formas e noutras circunstâncias.

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Como no final de 2017, quando os Alvvays editaram AntiSocialites: já conhecia, e gostava muito, do disco de estreia, homónimo, de 2014, mas este foi como uma bomba, a conjugação perfeita de um som pelo qual nunca perdi amor (uma espécie de cruzamento entre power pop com refrões luminosos e indie-rock cheio de ruído e melancolia), no exato instante em que (das relações amorosas ao lado profissional, passando pela crise na habitação) parecia que em todos os aspetos a minha vida decidira cometer suicídio, só para ver até que ponto eu aguentava.

Como cantava Morrissey, em “Shakespeare’s Sister”, dos Smiths, “Oh, I can smile about it now / But at the time it was terrible”; só estou a partilhar aquele detalhe pessoal se hoje não conseguisse sorrir quando me recordo desses malditos dias, pelo que aproveito e faço mais uma confissão: por esses dias senti uma espécie de irmandade por amigos que estavam mais ou menos nas mesmas circunstâncias – e todos tínhamos uma coisa em mim (além das circunstâncias): apaixonámo-nos por AntiSocialites, agarrámo-nos a ele como se fosse uma boia em mar tempestuoso.

AntiSocialites era o disco de uma separação que não chegou a acontecer: Molly Rankin (compositora e vocalista) escreveu uma série de canções sobre o fim da sua relação com Alec O’Hanley (guitarrista da banda) e as consequências do fim da relação – embora na vida a que vamos chamar real a relação entre ambos continuasse.

[“Belinda Says”:]

O BI diz-me que já sou demasiado grandinho para acreditar que os discos salvam – mas no final de 2017 a única coisa que me trazia paz era pôr AntiSocialites a tocar e, após muralhas de guitarra e feedback, chegar a “Forget About life”, a última canção do disco, quase a capella, e ouvi-la a cantar:

“Did you want to forget about life with me tonight?
Inhaling this undrinkable wine (Forget everything tonight)
Did you want to forget about life with me tonight? (Forget everything tonight)”

Foi o nascimento de um grande amor e, como atrás mencionado, cuido que não fui o único a quem aconteceu.

Cinco anos depois, os Alvvays não são exatamente os mesmos, não porque tenha saído ou entrado alguém na banda (embora a secção rítmica seja nova), mas porque cinco anos alteram todos os seres humanos. As famigeradas circunstâncias mudaram: se AntiSocialites encontrava a beleza nas sombras, Blue Rev tem muito mais, hum, aquilo a que à falta de uma expressão mais exata chamaremos amor à vida.

E à música: não é um acaso que a quarta canção se chame Tom Verlain, que é o nome dos líder dos Television, possivelmente a maior banda de guitarras de todos os tempos: Blue Rev é quase que uma homenagem à música de guitarras, espraiando-se por inúmeros sub-géneros – mantém-se a power pop, logo em “Pharmacist” (primeira canção do disco e single de antecipação do mesmo), a vertigem do feedback, a sombra do shoegaze, mas também se envereda pelos caminhos das guitarras jangly e, em “Pressed”, há uma incursão pelas guitarras dedilhadas reminiscente dos Smiths.

Qualquer criador que obtém um certo grau de exposição começará, a dado momento, a ter consciência da imagem que o público tem de si – quando os Alvvays, eles eram vistos como uma banda power pop engraçada, muito à conta do pequeno sucesso de “Marry me, Archie”, canção tão boa que contabilizar a quantidade de bom que encerra seria tarefa árdua e demorada; AntiSocialites atirou-os para uma espécie de panteão do indie melancólico ruidoso. Mas agora é como se eles estivessem a dizer-nos: ai pensavam que nós éramos uma banda tristinha de guitarras? Então tomem, vamos fazer um disco que é uma exibição da variedade do nosso talento.

O que nos leva a “Many mirrors” e temos de falar de “Many mirrors” porque é uma demontração cabal de como uma banda já se documentou exaustivamente acerca de como criar canções perfeitas, ao ponto de poder escrever manuais de escrita pop – ao invés, compõem e no caso de “Many mirrors” o encanto começa nas harmonias de vozes, antes de chegar um solo de uma exatidão rara, mesmo por cima das guitarras dedilhadas.

[ouça “Blue Rev” dos Alvvays na íntegra através do Spotify:]

Há discos que fazem sentido como um todo, há discos que são sequências de singles; em ambos os casos ocasionalmente damos por nós a pensar que esta ou aquela canção podia ser retirada e o álbum só ganhava com isso. Em Blue Rev até podemos por uns instantes pensar que “Very online guy” é um devaneio de synth pop com o que parece ser um cravo digitalizado e se calhar não encaixa tão bem no disco – mas logo a seguir vem a maravilhosa “Velveteen”, que também dá ares de synth pop e conclui-se que “Very online guy” é a ponte perfeita para unir “Many mirros” e “Velveteen” (que é, convém recordar, maravilhosa).

Enquanto se conta o número de canções que em condição alguma retiraríamos do disco, apenas para chegar à conclusão que Blue Rev precisa de todas, vamos picando esta e aquela crítica, até que descobrimos a razão para a demora de cinco anos entre AntiSocialites e Blue Rev: o disco começou a ser composto em 2017, acabando por ser interrompido por uma série de desastres, como – parafraseando a Pitchfork – inundações, roubos, problemas com visas e, claro, a pandemia.

Terá o adiamento dado mais tempo a Molly e Alec para reverem o que tinham escrito, acrescentar mais uma linha de guitarra, melhorar um refrão, aprimorar um coro? Será que sem pandemia “Tile by tile” teria aquelas cordas maravilhosas à descida do refrão? As muralhas de ruído e feedback que escondem a magnífica melodia de “Easy on your own?” seriam tão precisas pré-pandemia / inundação / whatever?

Não ouvi as demos, logo não arrisco – o que sei é muito básico, muito simples: há cinco anos apaixonei-me pelos Alvvays e cinco anos depois, a eles, a avaliar pela grandeza do som e dos refrães, o meu amor não lhes basta: eles querem o mundo, querem que toda a gente os ame. E por uma incrível coincidência, eu quero o mesmo.