O ex-jogador e treinador sérvio Sinisa Mihajlovic morreu, esta sexta-feira, aos 53 anos, vítima de uma leucemia que combatia desde 2019. A notícia foi avançada pela família do antigo craque que estava internado num hospital em Roma.

“Comunicamos tristemente a morte injusta e prematura do marido, pai, filho e irmão exemplar. Um homem único, um profissional extraordinário, disponível e bom para todos. Lutou corajosamente contra uma doença horrível. Agradecemos aos médicos e enfermeiras que o acompanharam ao longo dos anos, com amor e respeito”, pode ler-se. “Sinisa estará sempre connosco. Vivo em todo o amor que nos deu.”

O antigo defesa, internacional em primeiro lugar pela antiga Jugoslávia e, mais tarde, com a independência, pela Sérvia (seleção que optou por representar em vez da Croácia), foi uma das grandes estrelas dos anos 90 – uma personalidade moldada pela guerra, um jogador de feitio complexo e um exímio marcador de livres diretos diretos.

Salvou o tio durante a guerra e optou pela nacionalidade sérvia

Filho de pai sérvio e mãe croata, cresceu no pacato bairro de Borovo, junto ao Danúbio, onde viviam cerca de 50 mil pessoas. Começou a jogar à bola, no NK Borovo, e destacou-se rapidamente. Depois de uma curta passagem pelo Vojvodina, e com apenas 21 anos, mudou-se para o Estrela Vermelha: o clube de Belgrado pagou um milhão de marcos alemães, ofereceu um contrato de quatro anos, um Mazda 323F e um apartamento T3 na agora capital sérvia.

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Era aqui que jogava quando as forças croatas iniciaram a luta armada pela independência da Jugoslávia e a casa da família Mihajlovic – na fronteira entre a Croácia e a Sérvia – foi destruída pelo melhor amigo de Sinisa, um nacionalista croata. O pai, sérvio, foi capturado. A mãe, croata, ficou em Borovo, onde a família vivia. Um tio, também ele croata, foi preso pela Guarda Voluntária Sérvia. Salvou-se quando o jovem regressou a casa e revelou que eram familiares.

Sinisa Mihajlovic: a infância na Croácia, os livres diretos, o mau feitio e uma carreira inteira em Itália

Pelo Estrela Vermelha, Mihajlovic foi campeão europeu, vencendo na final de 1990/91 o Marselha (0-0, 5-3 nas grandes penalidades), e, mais de vinte anos depois, confessou à France Football: “Acho que foi a final mais aborrecida da história da Liga dos Campeões. Passámos 120 minutos em campo praticamente sem tocar na bola.”

Nesta fase, já se destacava por ser um exímio marcador de livres diretos, com um pé esquerdo excecional. Em entrevista à BBC, contou que o gosto por marcar livres apareceu quando era ainda criança: “Percebi rapidamente que a bola não queria que eu corresse com ela. Então tive de arranjar uma maneira de a chutar bem“, explicou.

O sucesso em Itália – uma carreira cheia de títulos

Mudou-se para Itália em 1992, onde se fez um dos nomes mais importante do futebol europeu de então. Tinha propostas da Juventus e da Roma, mas acabou por escolher o clube da capital italiana. Mais tarde, acabou por chamar a este período “os piores danos da carreira”.

Em 1994, vai jogar para a Sampdoria, treinada por Sven-Göran Eriksson, e o bom percurso no clube valeu-lhe uma convocatória para o Mundial de 1998, onde foi titular em todos os jogos da seleção sérvia.

É o técnico sueco que o leva para a Lázio nesse mesmo ano – e é na segunda passagem pela capital italiana que vive os melhores anos da sua carreira. Conquistou o primeiro título em Itália, uma Supertaça, um mês depois de chegar à Lazio, e voltou ao topo do futebol europeu com a vitória na final da Taça dos Clubes Vencedores de Taças em 1999, frente ao Maiorca. Com sete golos, ajudou a Lazio a conquistar o segundo campeonato da história em 2000 e voltou a ser convocado para representar a Sérvia no Campeonato Europeu daquele ano. Ficou no clube durante seis temporadas, até 2004, ano em que levantou o último troféu na Lazio, uma Taça de Itália.

“Tinha uma febre, não dei grande atenção, exames revelaram leucemia”: Mihajlovic interrompe carreira

Já com 35 anos, transfere-se para o Inter de Milão, treinado pelo amigo e antigo colega de equipa Roberto Mancini. Ficou até 2006, ano em que terminou a carreira, depois de vencer um campeonato, duas Taças de Itália e uma Supertaça em San Siro.

No total, como jogador, conquistou uma Liga dos Campeões, uma Supertaça Europeia, uma Taça Intercontinental, uma Taça das Taças, dois campeonatos de Itália, quatro Taças de Itália, duas Supertaças de Itália e três campeonatos da Jugoslávia.

A muito curta passagem pelo Sporting

É no clube de Milão que começa a carreira de treinador, inicialmente como adjunto. A partir de 2008, decidiu que queria ser ele a liderar equipas e inicia o primeiro projeto como técnico principal. Começou no Bolonha e passou pelo Catania, Fiorentina, AC Milan, Torino, tendo também sido selecionador da Sérvia.

Em junho de 2018, Mihajlovic foi contratado por Bruno de Carvalho para treinar o Sporting em 2018, no pós ataque a Alcochete. Acabou por despedir despedido por Sousa Cintra, presidente da SAD da Comissão de Gestão – esteve no clube nove dias no clube de Alvalade, não tendo feito nenhum jogo. Colocou os leões em tribunal e foi indemnizado em três milhões de euros.

A luta contra a leucemia que enfrentou “olhos nos olhos”

Acabou por regressar ao Bolonha, o seu mais longo projeto enquanto técnico, primeiro em 2008/09 e em seguida de 2018/19 a 2022/23, clube que orientou já com o diagnóstico da doença. Foi em julho de 2019 que tornou público sofrer de cancro. “Feliz ou infelizmente, realizámos uns testes que revelaram algumas anomalias, problemas que não tinha há uns meses. Tive uma febre, não dei grande atenção a isso, depois os exames  que fiz acabaram por revelar que tenho leucemia”, revelou aos jornalistas, a quem deixou uma promessa, na altura: “Quando ouvi o diagnóstico foi um choque. Sentei-me durante dias, a chorar. Nestes momentos, a vida passa-nos diante dos olhos. Não foram lágrimas de medo, foram de respeito pela doença – e vou enfrentá-la de peito aberto, olhos nos olhos, como sempre fiz.”

Iniciou logo o tratamento, esteve hospitalizado e acabaram por correr mundo as imagens do seu regresso ao banco do Bolonha para o arranque da temporada 2019/2020, frente ao Verona.

Mihajlovic volta a deixar futebol para lutar contra a leucemia: “Esta doença volta a lutar comigo”

Em março de 2022, voltaram as más notícias e, em conferência de imprensa, anunciou que iria ser novamente hospitalizado devido ao risco de recaída. “Realizo ciclicamente análises profundas após a doença, nos últimos anos a recuperação tem sido excelente, mas infelizmente nas últimas surgiram sinais de alarme e há o risco de recorrência da doença. No início da próxima semana terei que me ausentar e serei internado”, explicou. O destino seria novamente o Hospital Sant’Orsola, em Bolonha. Acabou por ser despedido sem setembro, face aos aos maus resultados na Série A.

O adeus de quem não o esquece

A morte de Mihajlovic deixou de luto o mundo do futebol, principalmente o italiano. O guarda-redes Gianluigi Donnarumma foi um dos que quis prestar a sua homenagem ao técnico que o orientou no AC Milan. “Foste um guerreiro e sei o quanto lutaste. Vou estar para sempre agradecido por acreditares em mim e por tudo o que me disseste desde o primeiro dia que nos conhecemos. Estarás para sempre no meu coração”, disse o jogador que foi lançado pela primeira vez na equipa principal dos italianos pelo treinador sérvio.

O Bolonha, último clube que orientou, também já se despediu do técnico nas redes sociais. “Adeus, mister. Viverás para sempre nos nossos corações”, pode ler-se na mensagem.

O principal campeonato italiano, que marcou a carreira do sérvio, quer como jogador, quer como treinador, lamentou a perda. “A Serie A está profundamente triste com a morte de Sinisa Mihajlovic, um ícone do futebol e da vida. A sua pura classe como futebolista e treinador, a sua força e a sua humanidade são um exemplo que deixa uma marca indelével no futebol italiano e mundial”.

Já a Lazio, equipa onde jogou seis épocas, prestou um minuto de silêncio antes do jogo particular com o Hatayspor. O clube romano disse que Mihajlovic “ficará na história da Lazio, não só por ter sido campeão de Itália, mas pela mensagem de esperança face às dificuldades que soube representar até ao último momento de sua vida”.

Foi na Lazio que Sinisa Mihajlovic partilhou balneário com Sérgio Conceição. O treinador do FC Porto lamentou a perda de uma pessoa próxima. “Hoje partiu um amigo, uma inspiração, um campeão. Sinisa, serás para sempre recordado pelo que fizeste em campo, e também por quem eras fora dele. Foi lado a lado que vimos as nossas famílias crescerem, que crescemos nós enquanto jogadores, homens, pais de família”, reagiu o técnico dos dragões.