Em “Os Espíritos de Inisherin”, o dramaturgo, argumentista e realizador anglo-irlandês Martin McDonagh (“Quatro Cartazes à Beira da Estrada”) volta a juntar os seus dois intérpretes de “Em Bruges” (2008), Colin Farrell e Brendan Gleeson. Se neste filme eles interpretavam dois assassinos profissionais irlandeses que estavam em Bruges à espera de ordens do seu patrão e bebiam muita cerveja, visitavam a cidade e tinham conversas que oscilavam entre o banal e o profundo, em “Os Espíritos de Inisherin” (nomeado para nove Óscares), eles são dois grandes amigos, Pádraic e Colm, que vivem na ilha (fictícia) do título nos anos 20 do século passado, situada ao largo da Irlanda, e bebem muita cerveja, olham para o mar e têm conversas banais.

[Veja o “trailer” de “Os Espíritos de Inisherin”:]

Até ao dia em que Pádraic chega ao “pub” local às 14h00, como sempre, vai beber uma cerveja com o seu amigo Colm, que já lá está, e este lhe diz, secamente e sem justificação, que já não gosta dele e que se acabaram as conversas entre os dois. Pádraic, que vive com a irmã, Siobhán, e tem uma burrinha de estimação chamada Jenny, não quer acreditar no que ouviu, não percebe porque é que o amigo já não quer a sua companhia nem beber e conversar com ele e recusa-se a deixá-lo em paz como ele pediu. Até que Colm, que compõe música e toca violino, lhe diz que por cada vez que Pádraic vier tentar falar com ele, cortará um dedo com uma tesoura de podar.

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[Veja uma entrevista com o realizador Martin McDonagh:]

É aí que “Os Espíritos de Inisherin”, que parecia encaminhada para ser uma comédia extravagante e caracteristicamente irlandesa com um travozinho fordiano, dá um golpe de rins, e que Martin McDonagh começa a fazer aquilo que o distingue, uma combinação de drama de fundo existencial e de humor muito negro e violento (“gallows humour”, humor de patíbulo, como lhe chamam os britânicos). Acrescentando-lhe aqui uns pós sobrenaturais, através do recurso à mitologia local: o título original do filme é “The Banshees of Inisherin”, referindo-se às criaturas sobrenaturais homónimas do imaginário celta que anunciam a morte, uma das quais toma a forma de uma cadavérica anciã fumadora de cachimbo, a Sra. McCormick.

[Veja uma entrevista com Colin Farrell e Brendan Gleeson:]

Na base da brusca rutura que Colm impõe a Pádraic, para se dedicar à sua música e “deixar algo para trás quando partir”, a súbita compreensão da brevidade da vida e do esquecimento que espera o comum dos mortais após desaparecer. O que faz de “Os Espíritos de Inisherin” um conto melancólico e pitoresco sobre a inevitabilidade da morte e a subsequente e total obliteração da nossa memória. Mas através da separação dos dois amigos e da drástica escalada de acontecimentos que se lhe segue, McDonagh pode também estar a propor uma alegoria sobre a contínua e absurda conflitualidade entre irlandeses (ver a guerra civil que se manifesta em fundo, no continente, de vez em quando, sob a forma de explosões e tiroteio, e que se espelha no conflito entre Colm e Pádraic, também eles em “guerra civil” um com o outro).

[Veja uma cena do filme:]

Dê para onde der, e seja como for, pelo inusitado da história, pela caracterização das personagens, pela beleza bravia da localização, pelas sugestões sobrenaturais e pela convivência desconcertante entre a meditação de cambiantes trágicos e a comédia ora excêntrica, ora bruta, “Os Espíritos de Inisherin” é uma pérola rara de um filme. Cujo valor vem também de um elenco onde brilham Colin Farrell no pachola, bondoso mas limitado Padráic, cujo pequeno mundo de ordem e felicidade entra em colapso quando o amigo lhe volta as costas, e Brendan Gleeson no pesado, grave e meditativo Colm, e que corporizam uma espécie de versão irlandesa e rústica, desavinda e trágicómica, de Bucha e Estica.

Há ainda os vários comparsas que dão colorido e espessura humana ao enredo, como Peadar (Gary Lydon), o polícia local, brutinho e insensível, a Sra. O’Riordan (Bríd Ní Neachtain), que acumula as funções de correio, merceeira e coscuvilheira, ou o não muito brilhante e aluado Dominic (Barry Keoghan), e filho infeliz do cívico. E, “last but not least”, temos Siobhán a paciente, inteligente e frustrada irmã de Padráic, interpretada pela excelente Kerry Condon, e a única pessoa que lê livros naquele ermo. E que, certo dia, farta de cuidar do irmão, de tanta gente bronca, tanta violência inútil e tanta estupidez, faz as malas e abandona a ilha, mostrando também ser a pessoa com mais maturidade, bom senso e ambição da exígua, verde e tacanha Inisherin.