Lydia Tár (Cate Blanchett), a protagonista de “Tár”, de Todd Field, é categórica. “É tão ridículo chamar ‘maestrina’ a uma mulher maestro como ‘astronete’ a uma mulher astronauta”. Ela está em posição de poder dizer coisas assim, nestes tempos de tirania do politicamente correto, tal como de arrasar, numa aula, um jovem candidato a maestro que afirma não gostar de Bach por razões puramente ideológicas. A brilhante e carismática Lydia tem a batuta da prestigiada Orquestra Sinfónica de Berlim, é uma compositora aclamada e já escreveu mesmo para o palco e o cinema, está a preparar uma nova gravação da “5ª Sinfonia” de Mahler, vai lançar a sua autobiografia e tutela um programa de bolsas que promovem a formação de raparigas para serem maestros, e entrarem num mundo da música clássica onde os homens continuam a estar em grande maioria.

Além do mais, Lydia Tár é, aparentemente, invulnerável ao “wokismo”. É lésbica e está casada com a primeiro violino (Nina Hoss) da orquestra que dirige. Têm uma filha adotiva etnicamente correta e Lydia apresenta-se como o “pai” dela. Tudo parece estar bem no melhor dos mundos, mas o superior talento de Tár e o seu apertado controlo sobre tudo o que a rodeia, quer no plano pessoal, quer no profissional, vão ser postos em causa, tal como a sua posição cimeira no meio da música erudita, quando uma ex-assistente e pupila se suicida, e ela começa a ser atacada nas redes sociais, contestada nas ruas e apontada como uma predadora sexual em série. É um caso de #MeToo às avessas.

[Veja o “trailer” de “Tár”:]

“Tár” foi acusado por algumas feministas (incluindo uma maestro) de ser um filme “anti-feminino”, ao centrar-se numa mulher que (aparentemente, já que o enredo apenas deixa sugestões) abusa do seu poder enquanto chefe de orquestra, em vez da personagem se inspirar num dos grandes maestros (caso do falecido James Levine, que aliás é referido a certa altura) que caíram em desgraça por motivos extra-musicais. Mas um dos motivos de interesse da fita é precisamente o facto da protagonista ser uma mulher, implicando que a prepotência, o favoritismo e o assédio sexual não são exclusivo dos homens, onde quer que se manifestem. Todd Field fez um filme sobre o poder, mais do que sobre música clássica, e a forma como também no ecossistema artístico-cultural se pode usá-lo mal e exercê-lo despoticamente, juntando-se ao mesmo tempo à velha discussão da separação entre as qualidades humanas do artista e a sua arte.

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[Veja uma entrevista com Cate Blanchett:]

Apesar da ambiguidade da história, que nunca explicita o que se passou entre Lydia e a jovem que se suicidou, e não é totalmente clara sobre o comportamento da maestro, embora vá deixando indícios de atitudes e práticas menos corretas (ver as estranhas movimentações da sua aparentemente fiel assistente, e a preferência de Lydia pela jovem e talentosa violoncelista russa que chega à orquestra, mesmo que nada de íntimo chegue a acontecer entre as duas, e pareça até que esta estará, pelo seu lado, a manipular a maestro) e até prepotentes, “Tár” tem a grande virtude de ser o primeiro filme que encara com frontalidade a “cultura do cancelamento” e a forma como arruína vidas, desfaz carreiras e compromete reputações.   

Seja ela realmente culpada, ou em parte ou totalmente vítima de uma conspiração, Lydia Tár vê-se alvo de imagens montadas para dar a entender que ela disse coisas chocantes que na verdade foram tiradas do seu contexto real, é julgada e condenada no mundo digital e perseguida na praça pública por matilhas de “ativistas”, transformada numa pária pela família e pelos seus pares, e acaba numa situação humilhante (Lydia não é ajudada pelo facto da sua defesa ser débil, pouco convincente e apresentar brechas, precisamente por ela sempre ter dado a sua posição de supremacia como adquirida e julgado que nada nem ninguém a poderia alguma vez pôr em causa).

[Veja uma conversa com o realizador Todd Field:]

“Tár” é fotografado com um refinamento de publicidade de luxo por Florian Hoffmeister e realizado com rigor geométrico por Todd Field, mas a escrita (também da responsabilidade do realizador) não está à altura do cinema que a concretiza. O argumento tem bastante ganga e dispersa-se em várias falsas pistas e situações irrelevantes (os estranhos sons que Lydia ouve, o episódio do ataque na cave do prédio degradado), que não contribuem para o enredo nem para a definição das personagens, acentuam a atmosfera dúbia sem necessidade e atiram a fita, desnecessariamente, para lá das (parece que agora institucionais) duas horas e meia de duração.

[Veja uma cena do filme:]

Já intocável é a magistral interpretação de Cate Blanchett (que voltou a estudar piano, e aprendeu a falar alemão e a reger uma orquestra para fazer o papel), numa Lydia Tár sobredotada, apaixonada pela música e pela sua profissão, e capaz de articular e explicar com eloquência a paixão e o prazer que sente (as sequências de ensaio da orquestra são de uma autenticidade inatacável, bem como as que revelam as políticas, os protocolos de funcionamento interno e as sensibilidades dos seus membros), e que comunga tanto do fogo do arrebatamento como do gelo do calculismo, do génio e do autoritarismo. Os que a rodeiam acabam por a julgar e condenar, mas o filme não o faz, deixando a cada um a sua opinião.

Nomeado para seis Óscares, “Tár” valeu já a Cate Blanchett o Prémio de Melhor Atriz no Festival de Veneza e o Globo de Ouro de Melhor Atriz Dramática, e diz-se à boca cheia que ela já tem no bolso a respetiva estatueta. Se a ganhar, será o trio de prémios perfeito. E mais do que merecido, já que este é um dos melhores, mais complexos e completos papéis da sua carreira.