A nova produção da ópera “Lucia de Lammermoor”, de Donizetti, a estrear esta sexta-feira, 3 de março, em Lisboa, coloca telemóveis e um automóvel no palco do Teatro Nacional S. Carlos.

Nesta produção, sob a direção musical do maestro titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Antonio Pirolli, e com encenação de Alfonso Romero Mora, estreiam-se a soprano Rita Marques no papel de Lucia, e o tenor Luís Gomes, no de Edgardo, o apaixonado de Lucia.

O restante elenco é composto pelo barítono Gezim Myshketa, no papel de Enrico, irmão de Lucia, o baixo Fabrizio Beggi, no de capelão, o tenor Marco Alves dos Santos, no de Arturo, a meio-soprano Patrícia Quinta, no de Alisa, amiga de Lucia, e o tenor Sérgio Martins no papel de Nornanno, e o coro do Teatro Nacional de S. Carlos.

Em declarações à agência Lusa, o encenador Alfonso Romero Mora salientou a sua opção de apresentar em palco “dois tempos”, o atual e o da narrativa operática, abrindo a ópera com o cenário de um apartamento de uma jovem, que convive com outros jovens que exercem violência sobre ela.

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“A história de Lucia é tremenda, conta uma história de abuso, de assassinatos, eu quero trazer essa história tremenda para a época atual, para que houvesse um contacto e uma identificação mais próxima com o drama que se desenrola no palco”, disse o espanhol Romero de Mora, que em maio do ano passado encenou neste teatro “Faust”, de Gounod.

A opera de Donizetti tem libreto de Salvatore Cammarano, segundo o romance “The bride of Lammermoor”, de Walter Scott, e conta a história de dois apaixonados, Lucia e Edgardo, separados por desavenças familiares: ele parte para lutar pela Escócia, ela é obrigada a casar com outro, pelo irmão, depois de uma intriga de mentiras tecida pelo irmão.

Edgardo, porém, regressa no dia do casamento de Lucia e protesta e canta a sua deceção por a ver entregue aos braços de outro.

Lucia terá, entretanto, matado o noivo, enlouquece e morre.

No libreto de Cammarano a morte de Lucia é uma incógnita, não se sabe a razão. Edgardo ao sabê-la morta prefere também morrer a viver sem ela, e mata-se.

Romero Mora escolheu que Lucia morre num acidente de viação, indo ao telemóvel, acidente presenciado “em direto via telemóvel” pelo irmão e o capelão.

“Nesta versão, vemos que ela conscientemente, decide suicidar-se, já que durante toda a sua vida o seu corpo não foi seu, porque foi alvo de abusos, foi obrigada a prostituir-se, foi sempre manipulada pelos homens que a rodeavam, sobretudo o seu irmão. A sua última decisão foi ‘o meu corpo é meu e decido sobre a minha vida’, e, numa decisão desesperada, não se sente uma criminosa, mas não sabe como escapar à Polícia, e por isso decide suicidar-se”, explicou o encenador espanhol.

“A história original de Lucia é apresentada no palco, com as personagens vestidas à época, que é afinal a projeção mental da protagonista, esse romanticismo está lá, não ‘per si’, mas como uma fantasia evocada pela leitura do livro de Walter Scott. A utilização dos telemóveis [em cena] liga-se muito à nossa realidade de hoje em dia — a utilização do telemóvel mudou toda a nossa vida, não a concebemos sem o telemóvel e vemos a realidade através do telemóvel, e, infelizmente, há casos em que assistimos em direto a certos acidentes”, disse, referindo a relação com as redes sociais.

“Gosto muito da rutura, o contraste entre esse mundo romântico, mítico de Walter Scott. E há um momento em que a fantasia já não pode existir mais porque a realidade toma o seu espaço, e aparecem os telemóveis e as redes sociais e parece-me interessante que Lucia, na sua famosa cena da loucura — não que esteja louca —, fugindo, utiliza o telemóvel e as redes sociais para fazer uma denúncia pública dos abusos de que foi alvo durante toda a sua vida”.

O encenador realçou o “excecional” elenco.

“Estão todos muito bem, entenderam muito bem a ideia, o conceito, e é um trabalho muito bonito de equipa”.

Romero Mora reconheceu que esta “é uma aposta arriscada” e agradeceu a confiança do teatro lisboeta, nomeadamente da sua diretora artística, Elisabete Matos.

“Lucia de Lammermoor”, de Donizetti, estreia-se na próxima sexta-feira, às 20:00, e volta à cena nos próximos dias 8 e 10, à mesma hora e, no dia 5 às 16:00.