Há uma cama de ferro suspensa na escuridão fechada. Há um homem deitado, imóvel. Há um silêncio que grita a solidão absoluta dos que chegam às margens da morte, despojados de todas as ilusões de eternidade. Os que já perceberam que não existe a imortalidade da alma e que mesmo Deus pode não ser mais do que “um velho hábito” de consolo, como antes tinha sido o trabalho, a busca da auto-superação, a arte, a criação artística. A cama suspensa na escuridão é o único lugar que resta aos que estão a morrer, quando todo o espaço parece encolher e tornar-se um minúsculo ponto de luz na vastidão cósmica.
Algures no mundo um homem está a morrer. Lá fora a cidade continua na sua vertigem ruidosa, na sua pressa, na sua necessidade de alimentar a ilusão da juventude, de apagar os sinais da morte e da finitude da vida construindo e alimentando um circo continuo barulhento e hiper-iluminado, que nos põe a correr em círculos atrás de prazeres infinitos a que se chamam hoje “entretenimento” e anunciam a salvação das almas pela via do consumo de divertimentos. Quem entrar no teatro da Politécnica, para ver, a partir desta terça-feira, 14 de março, a peça Foi Assim, escrita pelo norueguês Jon Fosse, um dos dramaturgos mais importantes da atualidade, é obrigado a sair desse circo, da mundanidade e é obrigado a confrontar-se com a morte, o silêncio, o escuro, as sombras e as palavras como único e ultimo laço entre o corpo e a vida.
Aquela cama, aquele homem, seremos nós um dia. Aquela cama lembra-nos todos os que estão, agora, a morrer em camas de ferro brancas suspensas sobre uma noite continua, entregues ao medo, à solidão e, pior, entregues à rememoração da sua vida, dos seus erros, dos seus falhanços, da irrelevância da sua passagem por este mundo, não importa quantas obras-primas nele se deixou. “Esta peça”, diz-nos o encenador e ator António Simão, “era um desejo do Jorge [Silva Melo]. Umas semanas antes de morrer, apareceu-nos com a tradução na mão e a dizer com ironia: ‘Esta agora é que eu podia fazer. Até já estou a ensaiar e tudo’. Como ele não conseguiu encená-la, porque morreu, nós decidimos fazê-la, convidando o José Raposo, que é um ator multifacetado e de quem o Jorge gostava muito.”
Num tempo em que se fala de “leitores sensíveis”, em que se tenta apagar dos livros e do mundo todas as marcas de violência simbólica, onde se defendem coisas como “a neutralidade da linguagem”, é de celebrar aqueles que, como Jon Fosse, sabem que nenhuma linguagem pode ser neutra porque cada palavra carrega uma história, uma plêiade de experiências, ressonâncias e vivências que estão gravadas na nossa memória coletiva, aqueles que sabem que cada palavra é um ato, é um facto que opera uma mudança no mundo e nos sujeitos. A ideia de tornar as palavras neutras para proteger os seres humanos da violência e do agonismo é, pelo contrário, a maior das violências que podem ser cometidas contra a humanidade, contra a civilização construída, justamente, sobre o império das palavras e do agonismo. “O tamanho da minha linguagem e o tamanho do meu mundo”, escreveu o filósofo Wittgenstein, que sabia que não se pode sair de dentro da linguagem para um qualquer espaço limpo e salvo.
Este dramaturgo vem, incansavelmente, dizer-nos que no fim da maratona não há nada senão a morte, mas ainda assim a vida vale a pena ser vivida porque nela construimos uma espiritualidade, chamemos-lhe Deus ou qualquer outra coisa, que torna a nossa passagem por este mundo absolutamente única, singular, necessária, estamos claramente, num universo que não tem medo da violência, do confronto, da fealdade, da anormalidade, porque isso é constitutivo do humano e fonte da sua arte, da sua criatividade. A morte, a violência da vida, o divino: eis a realidade segundo Jon Fosse, a realidade não travestida e distorcida pelas ideologias em voga, que colocam nos cartazes dos espetáculos “avisos” à suscetibilidade das audiências.
É, pois, importante que existam companhias, criadores, atores, que não tenham medo de espantar espectadores, alienar público, por encenarem um texto que nos retira da girândola de novidades e “divertimento” e nos convoca a encarar o nosso fim. Foi Assim anuncia, desde o titulo, que estamos perante uma história que já acabou. É quase o oposto do “era uma vez” que se abre para um infinito (re)começo da história. Esta peça estreou-se em 2020, num teatro de Bergen, na Noruega, e marca o regresso de Jon Fosse à escrita dramatúrgica depois de um hiato de dez anos. É um texto simples, escrito como uma partitura musical, moldado por longos silêncios eloquentes, por uma lentidão exasperante e repetições, que a cada volta abrem para novos sentidos.
José Raposo agarra com segurança este texto e esta vertigem. Naquele palco ele faz-nos acreditar que é um homem muito velho, debilitado, que respira pesadamente enquanto deambula pelo quarto exíguo, com o cansaço de quem escala uma montanha sem fim. O seu corpo curvado faz-nos pensar em Sísifo carregando uma pedra e todo o absurdo da existência humana e faz-nos pensar em Beckett n’Os Dias Felizes ou em Thomas Bernhard, na Geada, algures entre o realismo e a fantasia teatral.
“Estou muito feliz por estar finalmente a fazer um texto do Jon Fosse, gosto muito deste personagem, do velho pintor a andar entre a cama, a bengala, o andarilho e a cadeira de rodas e gosto muito deste texto, destas repetições, tão rico em palavras e em silêncios. O António Simão [encenador] diz-me para estar atento pois cada repetição, cada respiração e cada silêncio estão dizer coisas novas, abrem para novos significados que o texto tem encapotado e que se vão abrindo à medida que os dizemos. A palavra aqui tem um peso brutal. É como a música, um texto para ser ouvido mais do que para ser visto. Estou sempre preocupado se consigo fazer passar para o público todas as nuances do texto”, conta o ator cujo extenso currículo, que vai do teatro de revista ao cinema, mostra a sua versatilidade e talento.
À espera que um anjo passe pelo palco
Apesar de, desde a sua estreia na escrita para teatro, em 1994, Jon Fosse ser um dos dramaturgos mais encenados no mundo, ele é conhecido e reconhecido sobretudo como romancista. Porém, no meio teatral ele circula como um dos autores que melhor fala à modernidade sobre assuntos intemporais, como o suicídio, a morte, a busca de Deus, o sentido da vida, as relações familiares. As suas peças são escritas como um poema e Fosse chega a afirmar, como Garcia Lorca que “o teatro é poesia em pé”.
De facto, o norueguês é conhecido pelas suas peças cruas e melancólicas, onde abundam silêncios eloquentes e terríveis, onde há um texto rarefeito e um subtexto carregado de significados, tudo montado como uma música. Música de viola-baixo que o escritor tocava na sua juventude quando integrou uma banda de punk-rock. Há, pois, a matéria invisível da poesia com a qual os atores e encenadores têm que trabalhar, seja na forma como dizem as palavras, seja na cenografia, seja nos silêncios, pois tudo se desdobra para aqueles que têm coragem de se deixar levar.
Assim, António Simão, ator que que aqui se faz encenador, viu-se na necessidade de criar um cenário minimalista, que se materializou numa cama de ferro branco, sobre uma estrutura elevada que faz com que pareça estar suspensa para depois dar a ver um quarto, alguns objetos, a sugestão de uma janela, de uma porta. Esse minimalismo acaba por servir para criar momentos de grande beleza poética que contrastam com a dureza do texto. O corpo trémulo de um homem vagueia pelo quarto entre recordações dos filhos que nunca o vêm visitar, as mulheres que o deixaram e o reconhecimento de que, em nome da sua arte, a pintura, foi ele quem primeiro abandonou a família, foi ele quem se recusou a criar laços. Agora, que está a morrer, tem quadros em coleções importantes, coisa que ele não se cansa de repetir, mas não tem nada a não ser uma empregada perversa que, todos os dias, vem lembrar-lhe a sua condição de moribundo. Por vezes fica com raiva, o ressentimento assalta-o, então reza o Pai Nosso e tenta conversar com um Deus arisco. “Às vezes estou a dizer o texto e comovo-me em algum momento. Comovo-me quase sempre ainda que em momentos diferentes da peça”, acrescenta José Raposo.
“Deus tornou-se uma presença constante nas últimas peças de Jon Fosse, desde que ele próprio se converteu ao catolicismo, as suas criações remetem agora para o silêncio de uma igreja, para o ritual de uma missa no momento da comunhão”, explica António Simão, que gosta de imaginar encenar esta peça numa igreja. Apesar de se ter convertido em 2012, há muito que o imaginário de Fosse, quer nas peças quer nos romances, se coloca nas margens da experiência religiosa cristã. “Em Jon Fosse há sempre alguma esperança que dá sentido à vida”, diz ainda o encenador que reitera que “esta não é uma peça desolada, mas que nos diz que apesar da morte a vida vale a pena ser vivida”.
Encenado pelos nomes maiores do teatro europeu contemporâneo, como Claude Regy, Patrice Chéreau, Thomas Ostermeier, com este Foi Assim Jon Fosse ganhou pela, segunda vez, o mais alto prémio de teatro norueguês, o prémio Ibsen. Embora tenha chegado tarde à escrita teatral, ela tornou-se um dos pilares mais importantes do seu universo ficcional, tendo já sido levada ao palco mais de mil vezes, um pouco por todo o mundo. Nos Artistas Unidos, desde o ano 2000, que os textos de Fosse são regularmente representados.
No teatro, disse o dramaturgo, “quando uma noite é boa um anjo passa pelo palco pelo menos uma vez”. Hoje, que passa um ano sobre a morte do seu fundador, os Artistas Unidos esperam que esse anjo apareça.
Além desta estreia o coletivo fará, pelas 19 horas, uma sessão de leituras de peças escritas e encenadas por Jorge Silva Melo. Nesta sessão participam também muitos dos atores e atrizes que, ao longo dos anos, trabalharam com ele. Esta sessão é de entrada livre.
Às 21 horas, o palco do teatro da Escola Politécnica abre-se para a estreia da peça “Foi Assim” que fica em cena até 15 de abril. Este texto também fará parte de mais um volume da coleção Livrinhos para Teatro, feita em colaboração com a Snob. O livro, que acaba de sair e que estará à venda nos AU e em livrarias independentes contém duas peças de Jon Fosse, “Vento Forte” e “Foi Assim”.