As memórias são como as mesas que se encontram em palco: são mexidas, andam para a frente e para trás, vão da esquerda para a direita. Em “Última Memória” (estreia marcada para esta quarta-feira, 22 de março), a atriz e encenadora Sara Carinhas explora em forma de monólogo a importância que as memórias têm nas nossas vidas enquanto metamorfose. O que significa, igualmente, não nos esquecermos delas — e o medo que essa possibilidade acarreta.
À entrada da sala-estúdio Mário Viegas, no São Luiz, em Lisboa, Carinhas está vestida de veludo vitoriano, saia até aos pés e jaqueta verdes, e convida os espectadores a escreverem a sua primeira memória nuns papelinhos. Já na sala, um amontoado de cadeiras tem um quê de simbólico. O ambiente do espaço é de aconchego. Existem vários candeeiros com abat-jour em tons quentes e, ao fundo, está um piano. Há livros em cima de uma das mesas e numa outra, ainda encostada a um dos lados, encontra-se um projetor e uma caixa com slides.
A peça começa com Carinhas a sentir a luz de palco na cara, como se estivesse a apreciar o sol no rosto. Está a situar-se perante o espaço. Passa então a explanar a linha ténue que existe entre personagem e vida real, entre atriz e pessoa. Conta de como a sua professora russa Polina Klimovitskaya, a viver em Nova Iorque, explica aos alunos que o processo de interpretar uma personagem é semelhante à matrioska. Vai-se retirando boneca a boneca, camada a camada, até que fica apenas a matrioska mais pequenina, que não abre mais. A personagem está dentro dessa matrioska, é a personagem que está por vir.
“A ideia de teatro alio-a muito, neste caso, à forma como vejo a arte na minha vida. Como se fosse um sítio de tradução das minhas coisas” diz Carinhas ao Observador numa tarde de ensaios, o teatro vazio porque há greve da função pública e a bilheteira está fechada. “Não tem necessariamente a ver com catarse, mas como pegamos nas coisas e as transformamos noutras.” Revela que nunca baralhou tanto o seu trabalho em palco com a sua biografia ou, mais perigoso ainda, o momento em que está, na sua vida, aos 35 anos. “Neste espectáculo, fiz aqui um embrulho em que tudo cabe lá dentro. Mesmo aquilo que não digo ou de que não estava à espera”, acrescenta.
Depois de partilhar com os espectadores uma memória do palco da sala principal do São Luiz — foi o último que Pina Bausch pisou a dançar — Sara Carinhas deixa logo esclarecido o tom deste encontro: é de celebração. “Esta é sobretudo uma festa para combater a solidão e para ficar como recordação.” Nem haverá “pausas dramáticas para fingir que se passa alguma coisa” de pesado, de carregado. E canta, tem uma voz bonita: “Saio para a rua, solidão/ Entro para o quarto, multidão”.
Senta-se junto às mesas com uma pilha de livros e descalça os sapatos azuis de salto alto. Os dedos dos pés espreitam por debaixo do excesso de tecido da saia que se acumula no soalho de madeira. “Virginia Woolf diz que ‘escrever é como entrar numa sala escura e ter na mão uma lamparina para iluminar o que já lá está’.” E fala de como a escritora Gloria Anzaldúa, em Falando Línguas: Uma Carta Para as Mulheres Escritoras do Terceiro Mundo, refere que se pode escrever de qualquer maneira e em qualquer lugar, a experiência e o seu impacto na mente e no corpo é que comandam. Carinhas continua a passar a mão pelos livros e não esquece a guerra na Ucrânia, em que a escritora Yevgenia Belorusets teve necessidade de fazer um diário sobre os dias passados debaixo de bombardeamentos. Chama-se In the Face of War — Ukraine 2022.
“O plural desta história é no feminino. As pessoas das histórias são todas mulheres: as mulheres enfermeiras, as mulheres dos livros, as mulheres do prédio da minha avó que são todas viúvas”, explica Carinhas. “Ao início, quando escrevi, nem me apercebi da quantidade de figuras femininas que existiam. De propósito fiz a escolha de autoras, têm sido essas as minhas leituras.”
Comprar livros dá a Carinhas uma sensação de futuro. “Ponho sempre muitas marcas”, partilha com o público, explicando que a literatura proporciona redenção. “Sofro de aborrecimento e tenho de ler vários ao mesmo tempo.” Antes, tinha falado na existência de um projeto nórdico chamado Livraria do Futuro. Fica numa floresta à saída Oslo, na Noruega, e tem plantadas mil árvores. Em 2014, foi pedido a Margaret Atwood um conto que ninguém leu e foi guardado para ser lido 100 anos depois.
A dada altura, qual transmutação idêntica à de Orlando em Virginia Woolf, Sara Carinhas despe a saia — a jaqueta já a tinha tirado — e fica vestida com calças brancas e T-shirt preta. Começa a ouvir-se uma sonoridade new wave e Carinhas começa a dançar, a vários tempos, o corpo a ir explorando a sua relação com o espaço, os músculos a terem vontade própria. Carinhas está centrada numa ideia de repetição e de como essa repetição se transforma noutra coisa. “Há um jogo de me pôr de novo à prova e que é de mim para comigo. Permite-me sobreviver e não estar só a dançar.”
O contacto repetido com os objetos em palco vai ganhando novas camadas de significação. Tem em seu poder o diário da sua avó paterna. “Os objetos vão nitidamente mudando. Acho que o mais importante é, apesar de os conhecer e manipular, deixar-me surpreender por eles”, diz Carinhas. É-lhe por isso importante tocar nos livros, sentir-lhes o peso. “Há um sítio da relação física que é o que me ajuda mais, às vezes mais do que a emocional.” Em palco, não faz por sofrer, não faz por chorar. Se aconteceu, aconteceu. “As emoções estão lá, não preciso de fazer nada. Aquela lista do não fingir, não mostrar, não cristalizar, não repetir, tem tudo a ver com ‘nãos’ que tento ter.”
É por isso que, quando mostra os slides, as imagens não coincidem com as memórias que vai contando. A fotografia é para Sara Carinhas algo de muito íntimo. Uma das profissões que chegou a considerar foi a de fotojornalista. “É um jogo que tem a ver com questionar se a nossa memória é verdadeira. Se nos mostrarem a fotografia do nosso aniversário, lembramo-nos do nosso aniversário. E dá-nos noção da humanidade.”
A sequência de slides mostra uma fatia de Portugal, de há umas décadas. E a não coincidência entre palavras e imagens garantem essa leveza não psicologizante à ideia de memória: atribuem-lhe futuro. É como se houvesse um fio invisível que é passado das gerações passadas às futuras sem que ninguém seja protagonista. Não é por acaso que a dado momento haverá samba.
Teatro São Luiz, Lisboa. 22 março a 2 abril. Quarta a sábado 19.30, domingo 16.00.