O que é que um cómico nunca pode fazer? Exagerar o seu tempo em palco, ao ponto de já não estar a ter qualquer graça e parecer só aquele tio chato que, nos almoços de família, continua a contar histórias que só ele acha hilariantes quando já todos dispersaram. Com as séries acontece o mesmo: há que saber quando é altura de escrever “fim” no guião. “A Maravilhosa Sra. Maisel” reconheceu que estava na sua hora. Porém, aquele que podia ter sido um último espetáculo memorável acumula erros que só seriam aceitáveis numa atuação de principiante.
Os três primeiros episódios da quinta e última temporada de “A Maravilhosa Sra. Maisel” ficam disponíveis na Amazon Prime Video esta sexta-feira, 14 de abril, havendo mais seis para ver, estes libertados um a um nas próximas semanas. Para o serviço de streaming, este é o adeus a uma das suas produções mais icónicas. Aliás, foi a primeira série de uma plataforma do reino das novas plataformas a conseguir um Emmy para Melhor Comédia. Ao longo de cinco anos, seguiram-se mais 20 Emmys, além de seis Critic Choice Awards, quatro prémios Screen Actors Guild e três Globos de Ouro. Todos merecidos.
Quando apareceu, a história era diferente, bem escrita, tinha sentido de humor e um elenco que se encaixava tão bem quanto as peças de um puzzle. Problema: a criadora Amy Sherman-Palladino (que forma uma dupla de sucesso com o marido, Daniel Palladino, responsável por projetos como “Gilmore Girls”) não definiu logo no início qual seria a duração desta narrativa, tão pouco tinha na cabeça o final. E isso notou-se pelo caminho, com a série a desviar-se do foco principal, a andar à deriva, a repetir obstáculos e a perder demasiado tempo em cenas ou personagens que não interessam grande coisa.
[o trailer da quinta e última temporada de “A Maravilhosa Mrs. Maisel”:]
A quinta temporada faz um esforço para se recentrar: o que importa é a jornada de Midge Maisel (Rachel Brosnahan), uma dona de casa que transforma a humilhação da traição do marido, e consequente divórcio, em atuações de stand-up. Tudo isto na glamorosa Nova Iorque dos anos 50. Sabíamos, à partida, que ela acabaria por ter uma carreira de sucesso — se não, qual seria sequer o interesse da história? — e o que fomos acompanhando ao longo dos anos foram as suas tentativas de se libertar dos estereótipos da sociedade (uma mulher divorciada? Que horror. A trabalhar em bares e salas de espetáculo muitas vezes duvidosos? Duplo horror) e de vingar num mundo dominado por homens, onde as mulheres tinham direito a dizer muito pouco, quanto mais a serem sarcásticas.
Na reta final, “A Maravilhosa Sra. Maisel” apresenta alguns flash forwards que nos vão mostrando o que aconteceu a Midge, aos filhos, ao ex-marido e à agente Susie (Alex Borstein), embora a narrativa nos vá sempre puxando de volta ao início dos anos 60. Midge Maisel acaba de aceitar emprego como guionista do The Gordon Ford Show, um late show à imagem daqueles que ainda hoje são emitidos. Como em tudo na sua vida, é olhada de lado, ninguém quer as suas ideias, nenhum daqueles homens de fato, whisky numa mão e cigarro na outra, coloca sequer a hipótese de uma mulher poder ter piada.
O problema é que passamos a temporada inteira à volta do mesmo, com Midge a dar “dois passos à frente e três atrás”, como a própria refere, tal como aconteceu inúmeras vezes até aqui. Entendemos a luta, os obstáculos e reconhecemos que tudo o que ela conquista é sofrido e tem mérito. Porém, o que acontece a Maisel depois da sua grande oportunidade, aquela que a catapulta para a fama? Sabemos que ela está mesmo ali, ao fundo do túnel, mas não conseguimos alcançá-la. Existe, por isso, um fosso grande na história entre aquilo que está a acontecer na atualidade (anos 60) e os tais flash forwards que nos levam até às décadas de 80 e 90.
Não haver nada no meio é um problema. Sobretudo porque os episódios de cerca de uma hora gastam tempo precioso a fazer reaparecer personagens só porque sim (Milo Ventimiglia e uma perseguição no metro que não tem qualquer seguimento); uma feira onde somos obrigados a assistir duas vezes (repito, duas vezes) a um musical de mais de cinco minutos sobre tratamento de lixo (isso mesmo que estão a ler); os delírios obcecados de Abe (Tony Shalhoub) em torno de uma palavra que escreveu com uma letra a mais no jornal com o qual colabora; e uma quezília entre Rose (Marin Hinkle), a mãe de Midge, e a máfia das casamenteiras de Nova Iorque que teve muita graça quando apareceu, mas que esgotou há muito o tempo de antena.
Os arcos narrativos secundários são importantes, mas não é suposto aborrecerem-nos ao ponto de perdermos interesse no resto. E o resto resume-se a duas mulheres, Midge Maisel e Susie Myerson, muito à frente do seu tempo. Ambiciosas, persistentes e conscientes do seu valor, forjam uma união tão forte desde o início que devia ter sido capaz de enfrentar tudo mas que, tal como na vida real, se deixa atropelar por más decisões e ambições diferentes.
Rachel Brosnahan e Alex Borstein continuam a ser os grandes trunfos desta produção. O carisma é individual, quando cada uma está nos respetivos afazeres, e ganha ainda mais força quando se juntam numa cena. É como se estivéssemos a assistir a uma das melhores partidas de ténis do ano. Os diálogos são rápidos, as piadas sarcásticas (se piscarmos os olhos, podemos perder uma pérola), a fluidez com que a conversa se desenrola é sinónimo de uma cumplicidade nem sempre fácil de encontrar entre co-protagonistas.
As personagens secundárias também merecem uma menção honrosa: dos pais Abe e Rose, que vivem num mundo à parte e nonsense, completamente alienados da realidade à volta; aos ruidosos ex-sogros, Moishe (Kevin Pollak) e Shirley (Caroline Aaron), insuportáveis na mesma proporção em que são adoráveis; passando pela empregada Zelda (Matilda Szydagis), a malabarista que garante que aquela família não se desmorona; e pelo ex-marido, Joel (Michael Zegen), responsável por ter deitado o casamento pela janela mas, ao mesmo tempo, o único que está sempre preocupado com Midge; até ao ator que este ano passou a figura fixa no elenco, Reid Scott (Gordon Ford), uma novidade que faz esquecer um pouco a incompreensível ausência de Lenny Bruce (Luke Kirby); tudo se compõe como uma dança perfeita.
O único erro da série é não saber onde terminar certas histórias e que outras merecem mais desenvolvimento — e não basta serem relatadas por algumas personagens, como se de um mexerico se tratasse, como acontece num episódio onde é suposto perceber-se como se fraturou a ligação de Midge e Susie.
Sobressaem, claro, as roupas coloridas com chapéus e casacos a condizer; os fatos impecavelmente vincados; o barulho das máquinas de escrever; as bebidas “on the rocks”; os bares envoltos em fumo de tabaco; os carros, as ruas, as luzes. Estamos nos anos 50, primeiro, e 60, depois, e, também nesta refeição, comemos com os olhos. Não houve poupanças na produção e, no caso de uma uma série como estas, isso também conta para o sucesso da história.
Olhando para trás, “A Maravilhosa Sra. Maisel” foi um espetáculo digno de uma grande sala, daquelas em que Midge Maisel ambiciona atuar para milhares de pessoas. Por isso, é uma pena que esta última subida ao palco tenha pedaços pouco polidos, muito aquém das aparições da sua protagonista, que tem sempre um set ou uma dúzia de piadas preparados para qualquer ocasião. Dos nove episódios finais, só os oito primeiros foram disponibilizados aos jornalistas. Resta esperar (embora com muitas dúvidas) que o derradeiro tenha todas as respostas que não couberam na restante temporada porque Midge Maisel merece despedir-se com uma ovação e não apenas com meia dúzia de aplausos.