A notícia, por si só, é estranha: a SAD da União Desportiva Vilafranquense vai deixar Vila Franca de Xira e mudar-se para a Vila das Aves. A sociedade, que não jogava em casa mas ainda assim não estava tão longe quanto isso, vai passar a arrendar o estádio do Desportivo das Aves 1930, assumindo agora o nome Aves Futebol SAD, mudando de símbolo e mantendo o vermelho e branco enquanto cores dos equipamentos. Ainda assim, e por ser naturalmente estranha, a notícia levantou muitas dúvidas.
Ao contrário daquilo que poderia ser entendido inicialmente, o acordo agora anunciado não é uma fusão, não é uma aquisição e não é uma compra de parte da SAD que até aqui estava ligada ao Vilafranquense. A sociedade liderada pelo presidente Henrique Sereno, ex-internacional que passou por V. Guimarães e FC Porto, vai arrendar o estádio utilizado pelo refundado Desportivo das Aves 1930, mudando-se por inteiro de Vila Franca de Xira para a Vila das Aves – a cerca de 320 quilómetros da cidade ribatejana.
Sócios do Aves 1930 aprovam utilização do próprio estádio pelo Vilafranquense
A ideia da SAD – que chegou ao Vilafranquense há quatro anos – é solucionar um problema que se arrastava desde 2018/19, altura em que a subida à Segunda Liga foi alcançada. O mítico Campo do Cevadeiro de Vila Franca de Xira, onde a equipa continuava a atuar nos jogos a contar para a Taça de Portugal, não reunia as condições para ser utilizado em jornadas do segundo escalão. Ou seja, desde 2018/19 que o Vilafranquense atuava na condição de visitado em Rio Maior, a cerca de 50 quilómetros de casa.
O processo de construção de um novo estádio chegou a ser aprovado pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, para que o Vilafranquense pudesse voltar a jogar em casa e perante os seus adeptos, mas o processo continua parado e as obras nunca começaram. Dessa forma, a SAD ribatejana procurou soluções alternativas: chegou a estar perto de celebrar um acordo semelhante com o Sp. Espinho, que caiu porque o estádio aveirense também não estaria pronto a tempo, e virou-se depois para o Desportivo das Aves 1930, o antigo Clube Desportivo das Aves.
“Não é uma fusão, simplesmente vamos alugar o estádio do Aves. Vamos jogar como Aves Futebol SAD. Vamos transferir as coisas de Vila Franca para aqui. A Vila das Aves passou por momentos complicados. Durante um curto tempo, esta Vila não teve pessoas que dignificassem o futebol. Voltarão a ter gente séria. O objetivo é trazer o Aves para a Primeira Liga e para a Liga Europa, eventualmente”, explicou Henrique Sereno em declarações à Sport TV, recordando que o ainda Vilafranquense está no quinto lugar da Segunda Liga e sublinhando que todos os jogadores sob contrato vão transitar para o novo emblema.
Desportivo das Aves lança novo clube e refunda secções de futebol e futsal
O acordo foi aprovado em Assembleia Geral Extraordinária na Vila das Aves, com oito abstenções e quatro votos contra num universo eleitoral de quase 200 sócios, e é válido por dez anos. No final dessa década, o contrato de arrendamento é automaticamente renovável. A SAD vai passar a controlar todo o futebol que até aqui pertencia ao Desportivo das Aves 1930, incluindo as camadas jovens, com o clube a manter as equipas de futsal e a preparar-se para abrir uma secção de basquetebol.
Assim sendo, ainda não são ainda conhecidos os planos futuros da União Desportiva Vilafranquense – que, querendo manter o futebol profissional, terá de construir uma equipa de raiz e integrar os últimos escalões das Distritais. A SAD vai continuar a apoiar financeiramente o clube ribatejano nos próximos três anos, com Henrique Sereno a garantir que a relação com o emblema é positiva, mas que o mesmo não se pode dizer da relação com outras figuras do universo de Vila Franca de Xira.
“Apanhámos uma SAD que devia quase metade de Portugal. Uma SAD que era devedora e que passou a ser cumpridora. O novo presidente da Câmara não avançou para a construção do estádio. Na Segunda Liga é obrigatório ter um bom estádio. Passámos por uma fase em que não fomos tão bem recebidos… Não pelos adeptos, mas por pessoas que estavam ligadas à cidade. Queríamos um clube onde nos sentíssemos bem-vindos e essa foi a principal razão para termos escolhido este local. É muito importante para qualquer projeto ter essa união”, acrescentou o presidente da SAD.
Câmara de Santo Tirso devolve ao Aves Taça de Portugal conquistada em 2017/18
Ainda assim, e ao que tem sido veiculado por vários sócios da União Desportiva Vilafranquense através das redes sociais, a ideia não é assim tão linear. David Inácio, até aqui o coordenador do futsal ribatejano, tem sido a voz mais ativa e recorreu ao Facebook para revelar que foi despedido por email enquanto representava o emblema num jogo.
“Quero informar-vos de que fui demitido das minhas funções de responsável do futsal da União Desportiva Vilafranquense pela Comissão Administrativa do Clube. Fui demitido enquanto representava o clube em Alverca, no dérbi do passado sábado e durante a primeira parte do jogo, através de um email […] Não vou comentar as alegadas razões do meu afastamento, não alimento fábulas da carochinha. Fundei o projeto com o intuito de lhe dar alma, no entanto dei alma e dei o meu corpo e no final saio empurrado. Aos que cá ficam deixo o seguinte registo: a minha dedicação não tem preço”, escreveu há cerca de um mês, explicando ao Observador que nunca recebeu justificações mas que o despedimento ocorreu por ser “uma voz ativa da oposição”.
“Já tinha percebido que não iria ter muito espaço de manobra. Fiz o que tinha para fazer, criei a secção de futsal e já tínhamos 90 miúdas. Percebi que ia ser excluído por não compactuar, não alimento contos de fadas. Mas atenção: não me oponho ao negócio. Sou a favor daquilo que os sócios decidirem. A questão é que não me parece que tenham sido os sócios verdadeiros. A SAD inscreveu sócios novos – a equipa de futebol toda, as mulheres –, aproveitou uma falha nos estatutos que não prevê essa situação e validou uma decisão que já tinha tomado unilateralmente”, denunciou David Simão.
O dirigente, que faz parte da claque Piranhas do Tejo, garante ainda que não tem certezas sobre a eventual criação de um novo clube e de uma nova equipa de futebol profissional em Vila Franca de Xira. “Questionei isso mesmo na última Assembleia Geral, qual era o projeto para o futebol. Não obtive resposta. Conhecendo os trâmites legais no que diz respeito a inscrever equipas… Se estão a tratar disso, os sócios não foram informados. Se não estão, não vejo a janela temporal muito favorável para tratar disso. E de outras coisas. Quando se fala sobre ter ou não futebol para o ano não é só arranjar jogadores e treinadores, é perceber quem é que vai tratar da relva, perceber se há infraestruturas, o que está no campo, se há dinheiro, se há disponibilidade, se há recursos”, acrescentou.
“Nós, sócios, mantemos até ao fim a esperança de que isto não vá para a frente. Como? Não sei. Os agentes de futebol apregoam pelo futebol de verdade. Isto é tudo menos futebol de verdade. O futebol de verdade é a rua de baixo contra a rua de cima, é Vila Franca contra Alverca, Portugal contra Espanha. As pessoas acham que ao tirar o clube dali vão continuar a senda do sucesso. Mas também não sei se é esse o objetivo. Lá na Vila das Aves deviam pegar no clube na última divisão e crescer com ele, como nós fizemos. Demorámos 16 anos a chegar aqui. Mas percebo… Está ali um clube de Segunda Liga de mão beijada”, terminou David Inácio.
Certo é que o acordo marca o regresso do futebol profissional à Vila das Aves três anos depois da saída da Primeira Liga. O então Desportivo das Aves foi despromovido à Segunda Liga pela via desportiva em 2019/20, numa altura em que a SAD era liderada pelo chinês Wei Zhao, e enfrentou rescisões unilaterais de jogadores, equipa técnica e funcionários, para além de ter falhado o licenciamento para as provas profissionais da época seguinte.
Acabou por prescindir de competir no Campeonato de Portugal, que era então o terceiro escalão nacional antes da criação da Liga 3, e as dívidas de quase 37.500 euros a três clubes estrangeiros levaram a FIFA a impedir a inscrição de novos atletas pela SAD e pelo clube fundador. Em outubro de 2020, o clube refundou as secções de futebol e futsal sob a designação de Desportivo das Aves 1930, que agora também deixa de existir no que ao futebol diz respeito.