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Rita Lello e a mulher que ousou imaginar a dança contemporânea

Este artigo tem mais de 6 meses

"Isadora, fala", peça a partir de Isadora Duncan, está prestes a estrear-se no Teatro São Luiz, em Lisboa. O Observador falou com a atriz que volta àquela que foi a sua “casa” durante 15 anos.

Voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, é especial para Rita Lello: “Foi onde trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta
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Voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, é especial para Rita Lello: “Foi onde trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, é especial para Rita Lello: “Foi onde trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Rita Lello começa por dizer que é preciso ter coragem. No rescaldo do ensaio e depois de uma breve entrevista, senta-se nas cadeiras dispostas fora da sala, em paralelo a uma grande janela onde se espera uma visão longínqua e uma sensação de queda em ápice, entre caixas e arrumações, no chão da antiga junta de freguesia de Marvila, em Lisboa. Estamos no corredor do Polo II do Teatro Meridional e ao fundo reserva-se uma mesa de pequenos doces e café.

Enquanto fuma o seu primeiro cigarro, depois do ensaio, Rita Lello continua a falar sobre a coragem do jornalismo e de ser jornalista. Conhece muitos. A avó era jornalista, os tios são jornalistas e a certa altura ainda pensou enveredar pela área, mas “meteram-se outras coisas”. “É uma profissão muito bonita, muito importante e muito séria”, começa. “Mas parece que desrespeitamos as profissões mais sérias.” Fala das instituições portuguesas e, depois, por acréscimo o povo, as pessoas e os cidadãos.

É também sobre respeito e coragem que a peça “Isadora, Fala!” — ainda que Rita Lello, criadora e intérprete desta histórica sobre a bailarina norte-americana, diga que se tivesse de resumir Isadora Duncan numa palavra seria em “liberdade”.

Este não é um espetáculo biográfico nem cronológico. Tem uma cronologia própria que ousa ser volátil e que percorre uma narrativa de gestos intemporais e “distúrbios de vigor”, mesmo que repleta de memórias. Passa pela infância, a pré-adolescência, a adolescência e segue-se o despertar da vivência e da liberdade do corpo, “que foi também uma das suas lutas” recorda a atriz.

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O seu peito abre-se. O movimento é claro e intensifica-se no vermelho gritante do macacão que veste. Gesticula uma e outra vez. Mas há uma questão que não nos larga do início ao fim: quem está à nossa frente, em palco? É uma voz. É uma mulher. São várias. É a distinta Isadora Duncan através de Rita Lello. Ou o oposto. São muitas respostas para uma questão a que Rita Lello continua a não saber responder. “Não sou sempre eu.” Mas o que é que acontece? “Acontece uma mulher a falar de vários momentos da vida de uma outra pessoa [risos]”.

Tinha a certeza de uma coisa: “Não queria dançar”

“Isadora, Fala!” é um monólogo que decorre a grande velocidade e vai crescendo. “Há muitos momentos que são uma espécie de delírio.” Para Rita Lello é “uma espécie de comboio em que entro e só saio no fim da viagem”. Uma viagem que assiste a tantas outras que Isadora Duncan fez até chegar à Europa.

De América até França fala-nos do ballet e daquilo que o professor lhe pedia. “É clara a sua preocupação com a formas como as crianças aprendiam e a importância da pedagogia, mas é difícil encontrar em concreto um ponto de partida”, continua a atriz.  Não há ponto de partida nem de chegada, mas há um certo momento em que a atriz sai da secretária onde leu, refletiu e interpretou a vida de Isadora e leva esta peça a palco “melhor ainda do que tinha pensado”.

“Cem anos não foram suficientes para dar resposta às reivindicações de Isadora. Grande parte das coisas que a Isadora diz ainda não estão cumpridas", diz Rita Lello

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Enquanto encenadora, pensa de forma racional cada espetáculo que faz. Depois põe-se a jogo. “Normalmente, o que acontece é que o caminho de chegada já não é o espetáculo que eu queria fazer na secretária. É melhor”, afirma ao Observador. Cria porque encontrar um discurso é algo que a inquieta. “Encontrar um discurso que vá ao encontro da época em que vivo.” É no processo de experiência que Rita Lello e Isadora Duncan nascem.

O livro de poema de Graça Pires, Jogo Sensual no Chão do Peito, é o princípio do itinerário, recomendado por Eugénia Vasques, professora jubilada da Escola Superior de Teatro e Cinema e crítica de teatro. “Ela [Graça Pires] escreve inspirada pela Isadora”, o que em conjunto com as biografias sobre a bailarina e os seus próprios escritos levam a um entrecruzamento – o texto final. Um monólogo seguiu-se de um outro e isso despertou tantas coisas quanto a atriz perceber que gosta de estar acompanhada em palco, “mas gosta mais ainda de ensaiar acompanhada”.

O texto é frenético, o movimento constante, mas crescente e com ritmo. Pode parecer extenuante, mas Lello garante que é exatamente ao contrário: “É energizante.” E isso tem que ver com a personagem e com a vontade de transportar tudo isto em palavras e movimento. Tudo isto em simultâneo. “Esse é o grande desafio deste espetáculo”.

Sozinha em palco, mas “muito bem acompanhada” na sua construção, a coreógrafa Amélia Bentes foi também uma peça fulcral na composição desta peça de teatro, o que nos leva à icónica frase de Duncan “uso o meu corpo como um meio, tal como o escritor usa as suas palavras. Não me chamem bailarina.”

É então que a encenadora e criadora do monólogo decide usar o corpo como palavra a partir da Língua Gestual. Pediu a uma intérprete de Língua Gestual Portuguesa que traduzisse os textos de Graça Pires, gravados em vídeo e, depois analisou com Amélia Bentes cada poema: “Os gestos que usamos aqui são os gestos que coreograficamente e espacialmente nos pareceram mais interessantes, relacionados com cada excerto que está a ser dito”, explica.

Tinha a certeza de uma coisa: “não queria dançar”, mas este é um espetáculo sobre uma bailarina, e não é “uma bailarina qualquer”. Isadora Duncan (1877-1927) abriu uma “autoestrada” para a dança contemporânea e rompeu com os condicionalismos da dança clássica. “Não é uma pessoa qualquer”, recorda-nos Rita Lello não deixando de reconhecer que pouco conhecia de Duncan antes de agarrar esta peça.

“O que sabia tinha sido o que a minha avó me tinha falado dela”, lembra. “Ela falava sempre com muita admiração e com muito respeito.” Maria Carlota Álvares Guerra foi jornalista e co-fundadora da revista Crónica Feminina. “A minha avó era uma mulher muito inteligente e sempre me habituei a ouvir falar da Isadora assim. Embora à volta as pessoas se referissem a ela como se fosse meio doida.” E não era só porque estava a reinventar os pressupostos da dança para o próximo século. “É uma questão política, francamente. Era uma pessoa de esquerda e foi vítima de uma propaganda brutal norte-americana, que a desacreditou e que fez com que os últimos anos da vida dela fossem um inferno. Ela fala disso em alguns textos.”

Descalça e com apenas um banco. “Aquele banco é o piano, é o banco do comboio que a leva para São Petersburgo, é a cama dela é o chão do estúdio do Gorden Craig, é o caixão dos filhos, é o carro que a matou. Aquele banco é tudo”, afirma. Este é um espetáculo que resguarda um compromisso entre exploração de um espaço neutro e a “instalação de situações posições, posturas que possam evocar determinada coisa”.

“Ela fala de tudo”

“Isadora Duncan fala de tudo.” E é esse lugar que Rita Lello procura nesta peça. Não é por acaso que o espetáculo se chama ‘Fala!’. Para a encenadora, Duncan fala de todos os assuntos que, ainda hoje, são fundamentais, ocupando um lugar de fala e de liberdade de expressão. “Cem anos não foram suficientes para dar resposta às reivindicações de Isadora. Grande parte das coisas que a Isadora diz ainda não estão cumpridas. Os discursos que hoje vemos, as comunidades LGBT, as minorias que estão cada vez mais sozinhas… isto é um caminho para a fragmentação e o que é certo é que passaram cem anos, mas o panorama é muito parecido, ainda que com as suas especificidades.”

Muito se escreveu quando a bailarina e coreógrafa se mudou para a Europa Ocidental e para a União Soviética. Constantin Stanislavski foi um deles. Conhecido pelo “seu método” na representação escreveu sobre a experiência de assistir aos espetáculos de Isadora. Tem páginas dedicadas a Isadora em A Minha Vida Na Arte (publicado em 1924), último livro que escreveu e em que descreve o processo todo. “Viu como é que era o teatro, quem é que estava, quem eram os intelectuais que lá estavam, qual é que era a reação, qual foi a reação do público que não era tão erudito, como o público mais ou menos erudito vai atrás da validação dos artistas e dos filósofos”, explica a encenadora.

“A liberdade de expressão conjugada com o amor resolve tudo e, no entender dela [Isadora], se as pessoas realmente se amassem e se escutassem dariam lugar à compaixão”

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Os seus movimentos imitavam a arte grega clássica, assim como danças folclóricas e sociais. Nada de passos en dehors do ballet, nada de plié ou ponta esticada. Isadora defendia que cada movimento estava conectado, um nascia do que o precedia, assim como levava ao próximo de forma orgânica, jamais calculada ou ensaiada. E é este o caminho que Rita Lello quis percorrer.

Representar a decadência pelo qual a própria artista passou, enquanto mulher nos anos 1920, perseguida pela comunicação social, pelas perdas, pela tristeza é também uma exigência constante. Não é que Isadora tenha falado diretamente sobre o suicídio, mas “conseguimos perceber uma consciência degradante”. Rita Lello optou por não inserir isso na peça, porque vai ganhando “um ramo do poético, porque vai abandonando o ramo da narrativa”, explica.

Mas concentrar todas as preocupações, representações e ideias de uma mulher como Isadora é uma responsabilidade que a atriz reconhece ser acrescida, mas extasiante. “Ela [Isadora] tinha um respeito pelas crianças e pelos jovens muito belo. E isso é algo que escreve nos seus textos. Chega a dizer que ‘se começarmos pelas crianças, todos os problemas do mundo se resolvem’”. A educação da época, no seu entender, era muito violenta.

A emancipação da mulher, os direitos da mulher, a escravidão pelo casamento, o patriarcado, o body shaming são questões que estão na ordem do dia e que são importantes e reflexivas para a atriz. “Estas pessoas [artistas] foram martirizadas. Foram grandes corajosos que abriram caminho para a nossa liberdade.” Mas, hoje, Isadora e Rita ainda têm muito para dizer. “A liberdade de expressão conjugada com o amor resolve tudo e, no entender dela [Isadora], se as pessoas realmente se amassem e se escutassem dariam lugar à compaixão”.

Para quem não a conhece, Duncan é muito mais do que a ideia de “uma maluca que morreu enforcada numa écharpe [enrolada na roda de um carro]”. E esse é também o propósito desta peça. “Perceberem que Isadora Duncan é muito mais do que isso”. É também por essa razão que voltar a “casa”, à Sala Mário Viegas, se torna ainda mais bonito para Rita Lello. “Foi onde eu trabalhei cerca de 15 anos. Não naquela sala, mas com a Companhia Teatral do Chiado e com o Mário, no primeiro estúdio do São Luiz”, conta.

A plateia é a mesma, as cadeiras são as mesmas, só mudaram de cor, mas para Rita tudo isto remete para um lado nostálgico. “Esse lado também é giro, também é do coração.” E é de coração aberto que Duncan e Lello nos aguardam entre 31 de maio e 9 de junho.

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