Até há três dias, se não nos falham as contas, Bob Dylan tinha atuado sete vezes em Portugal, no decurso da sua longuíssima carreira (já lá vão mais de 60 anos de discos); só este ano, toca três vezes. O que é que o faz correr? Ele que tem 82 anos há pelo menos 30 e já vendeu os direitos todos da obra a quem ofereceu mais. Desde que lançou “Rough and Rowdy Ways”, o último álbum de originais e aquele que dá nome a esta nova etapa da sua “Never Ending Tour”, em junho de 2020, já saíram mais oito – oito – discos: compilações, gravações perdidas, registos de concertos, o último dos quais, “Shadow Kingdom”, sexta passada – ainda ferve.

“Temos de servir alguém”, diz ele no único grande hit que tocará esta noite, “pode ser o Diabo ou pode ser Deus”. Mas ele próprio parece o desmentido disso mesmo. Quem serve Bob Dylan senão a ele mesmo? Sem concessões, e, portanto, a quem o ouve. Um homem que parece guardar todas as palavras que tem nele para cantar, quase nunca para falar. Dylan é uma nascente, interminável. Uma jazida de canções que se cruzam como se fossem de todos os tempos. Mexa-se na Constituição, estude-se uma alteração às regras da democracia representativa: Dylan devia ser Presidente vitalício dos Estados Unidos. Enquanto houver Dylan, há América.

Há nele toda a música e toda a literatura americanas, negra, branca, do campo, da cidade, do dia, da noite, do senhor, do empregado, do falhado, do vencedor. Em qualquer música de Dylan, começa sempre uma estrada. Seguimos viagem, mesmo que nunca tenhamos ouvido as canções. Embarcamos. O que é que o faz não só continuar a correr, mas correr cada vez mais? Talvez apenas o dinheiro. Mas seja o que for. Vimo-lo em 2008, no então Optimus Alive; vimo-lo em 2018 na Altice Arena, num concerto invulgarmente antológico da carreira; ontem, no Campo Pequeno, na segunda noite em Portugal este ano e na primeira de duas em Lisboa, Dylan deu o melhor concerto que já lhe vimos. Imagine que conhecíamos as canções.

O senhor Zimmerman está em grande forma e ontem, imagine-se, estava até simpático: todo o serão, soltou cinco “obrigados” entusiasmados e ainda apresentou os músicos. Um falatório. Era uma noite feliz e, no fim, feliz foi como toda a gente saiu. Sorrisos de orelha a orelha. Palavra de honra: não é habitual com Dylan, que é uma espécie de monumento vivo, mas, muitas vezes, desaponta os que vão à espera de trautear sucessos. Oxalá logo volte a repeti-lo – ao que parece, ainda há bilhetes. Aproveite que não dura sempre (você; Bob Dylan está com ar de quem ainda nos vai enterrar a todos e fazer trinta canções sobre isso). Anjo-da-guarda cinzento, nasalado, brilhante, da teia de canções que urde a nossa história da América. Porque somos todos americanos – por causa de autores como Dylan.

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Seguindo à risca o alinhamento antecipado, tocou, fundamentalmente, todo o “Rough and Rowdy Way”. Foi lá que foi buscar o extraordinário “I Contain Multitudes”, “False Prophet”, o épico “Black Rider”, “My Own Version of You”, “Crossing the Rubicon”, “Key West (Philosopher Pirate)”, “I Made Up My Mind to Give Myself to You”, “Mother of Muses” e “Goodbye Jimmy Reed”. Quando não havia mais “Rough” para tocar, foi a “Shadow Kingdom”, esse que tem dois dias de vida e em que recupera temas de uma época muito específica: a segunda metade dos anos 60, inícios dos 70. É mesmo com dois deles que está a abrir a digressão: “Watching the River Flow”, single de 1971 , e “Most Likely You Go Your Way and I’ll Go Mine”, de “Blonde on Blonde (1966). A ’71, vai garimpar também “When I Paint My Masterpiece”, originalmente gravada pelos The Band. “I’ll Be Your Baby Tonight” vem do oitavo album de estúdio, “John Wesley Harding”, de ’67, e “To Be Alone With You” do nono, “Nashville Skyline”, de ’69.

E tudo isto faz sentido junto como uma obra que se dobra sobre ela mesma e encosta a uma ponta tecida tantas décadas atrás. Há versos que Dylan canta e que parecem atravessar todas as suas canções: “get yourself out of trouble”, “you know how hard you tried”, “follow me close”, “I have no apologies to make”, “you don’t have to worry”, “you’ve seen it all, you’ve seen the great world and you’ve seen the small”. A única diferença para o alinhamento do concerto de sexta, no Coliseu do Porto, foi a vaga para fazer uma versão de outro: com “Not Fade Away”, dos The Crickets, a tomar o lugar de “That Old Black Magic”, de Johnny Mercer.

“Gotta Serve Somebody”, já se disse, foi o único hit da noite, tocado numa versão enérgica que não entusiasmou o público mais do que já estava, um público perceptivelmente informado na obra e nas expectativas, embalado, desde o primeiro momento, pelo músculo notável com que Dylan e a sua banda se apresentaram (dirão que é o início da tour, que ainda não se aborreceu de cantar aquelas canções, mas em 2018 também era o início da tour e, no entanto, já ele parecia mais farto das suas canções do que um feirante dos seus pregões).

“Every Grain of Sand”, de “Shot of Love” (1981), fechou as contas, 17 temas e quase duas horas depois. O povo ainda apostou num encore que merecia, mas não estava previsto. E se não está previsto, não se faz. Cá fora, um imitador de Dylan, de guitarra e micro, tocava os hits que o original nunca se daria ao desplante de oferecer assim, de mão beijada. Um bom negócio, que aconchega ainda mais o público que aproveita para tirar selfies com o cartaz do concerto, pendurado sobre a porta do recinto. Afinal, o artista não permitiu telemóveis na sala – e todos precisamos de provas de que se passou um domingo de junho na presença de uma lenda.