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O título, por si só, já era sugestivo: “A história de uma underdog irlandesa”. O texto, esse, confirmava tudo o que seis palavras de apresentação prometiam. Katie McCabe, estrela da Rep. Irlanda que joga no Arsenal, escrevia na primeira pessoa como tudo começou à luz de um encontro da seleção feminina que quase não teve assistência. “Ainda me lembro que estariam umas 50 pessoas lá: amigos e famílias das jogadoras e nós, um grupo de estridentes miúdas de 12 anos que jogavam no Templeogue United. Depois do jogo, fiquei ali com o bilhete que me tinham dado na mão a suplicar por um autógrafo, a fazer os maiores olhos de Bambi possíveis para que pudessem assinar”, recordou sobre esse momento. 15 anos depois, a realidade mudou.

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Nesse mesmo (longo) texto publicado no The Players’ Tribune, McCabe vai partilhando vários capítulos do caminho até ao Mundial. O facto de questionar como é que uma rapariga irlandesa poderia chegar à equipa do Arsenal como Emma Byrne (uma das jogadoras que assinou o tal bilhete do jogo), o dia em que reforçou as gunners com apenas 20 anos quando ainda trabalhava no Nando’s de Tallaght, em Dublin, “a cozinhar suculentos frangos com piri-piri português”, o momento em que se tornou capitã da seleção A da Rep. Irlanda aos 21. “Senti-me uma impostora porque a braçadeira mudava tudo. Não tinha escolha: não podia falhar. Não podia desiludir o país que amo. Tinha de mudar os meus hábitos no Glasgow City a quem estava emprestada, tinha de voltar para jogar ao Arsenal. Tinha de ser a melhor Katie que conseguisse”.

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“As pessoas na Irlanda falam sempre do primeiro Campeonato do Mundo dos homens, em Itália, em 1990. Nós queremos que este seja o nosso Itália-90. As raparigas irlandesas na Austrália e na Nova Zelândia, ainda te lembras desse verão? É por isso que vamos lutar. É nisso que estarei a pensar antes do início do jogo. Sei que na Irlanda muitas meninas vão estar a ver-nos, tal como eu via a Emma Byrne. E só espero, do fundo do coração, que algumas estejam sentadas a pensar ‘Um dia vou fazer aquilo'”, rematava.

Se dúvidas ainda existissem depois das dificuldades criadas à Austrália no jogo inaugural, a forma como a capitã da Rep. Irlanda mostrava bem a vontade de fazer história neste Mundial. Kailen Sheridan, guarda-redes do Canadá, referia antes do encontro que subestimar a equipa era quase gasolina para subirem o seu rendimento a patamares como aqueles que valeram, por exemplo, a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021. Na primeira parte, e mesmo sabendo que após o nulo com a Nigéria estavam sem margem de erro, não foi isso que se viu e só mesmo no segundo tempo o Canadá conseguiu vergar uma formação irlandesa que voltou a merecer mais do que o resultado traduziu com McCabe em destaque.

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O encontro começou com uma Rep. Irlanda a todo o gás, com Kyra Carusa a obrigar Kailen Sheridan a uma grande defesa para canto após uma saída rápida com cruzamento da direita ao primeiro poste (3′) antes de Katie McCabe mostrar o porquê de ser uma das grandes estrelas da equipa e deste Mundial com um golo de canto direto que fez o 1-0 (4′). As jogadoras canadianas juntavam-se para reunir ideias mas seriam na mesma as europeias a continuar melhor na partida, entre um remate de longe de Jordyn Huitema após atrapalhação da defesa contrária que saiu à figura de Courtney Brosnan (23′) e um desvio na pequena área de Vanessa Gilles depois de uma assistência da outra central Kadeisha Buchanan que saiu por cima (30′). Kyra Carusa ainda voltaria a obrigar Sheridan a uma defesa apertada mas seria mesmo o Canadá a empatar nos descontos, com Julia Grosso a cruzar na esquerda e Megan Connolly a desviar para a própria baliza (45+5′).

Tudo mudava nesse momento. No resultado, no plano emocional, na confiança. Depois, Beverly Priestman mexeu ao intervalo. Passou para um 4x2x3x1 que deu outros equilíbrios à equipa, lançou as duas jogadoras mais cotadas e experientes na frente (Christine Sinclair e Sophie Schmidt), demorou menos de dez minutos a colher os frutos: Schmidt fez um fantástico passe de rutura para a entrada de Adriana Leon pelo meio e a jogadora do Manchester United fez a reviravolta com McCabe a tentar ainda a “dobra” na área (53′). O jogo tinha mudado de vez mas, depois de meia hora de domínio do Canadá no reatamento, a Rep. Irlanda ainda voltou a assustar com a inevitável McCabe a ver um remate muito perigoso ser desviado para canto.

A pérola

  • Katie McCabe já tinha dado nas vistas no primeiro encontro com a Austrália, sendo a melhor jogadora das irlandesas apesar da derrota, e teve agora o seu momento de glória que tanto ansiava com um golo de canto direto que foi o primeiro do país num Mundial. Se fora de campo a capitã cresceu com dez irmãos, no relvado consegue criar um espírito incomparável com dez irmãs. Não há bolas perdidas, não há lances impossíveis, no limite não há chuva mais forte que atrapalhe (como aconteceu nos últimos minutos da primeira parte): é a menina que aos 12 anos tinha um sonho que faz sonhar a equipa, mesmo que esses sonhos em termos de Mundial-2023 tenham chegado ao fim com mais uma derrota.

O joker

  • Foi suplente utilizada frente à Nigéria sem efeitos práticos, foi suplente utilizada com a Rep. Irlanda com efeitos práticos. A presença de Christine Sinclair em campo quase que atribui um outro estatuto ao conjunto canadiano mas foram as movimentações de Sophie Schmidt, jogadora de 35 anos das Houston Dash que ganhou um ouro e dois bronzes em Jogos Olímpicos pelo Canadá, que vieram baralhar por completo as contas da defesa da equipa europeia. Quando conseguiram acertar, era tarde…

A sentença

  • Com este resultado, e depois do susto inicial no encontro (uma derrota deixaria as contas mesmo muito complicadas), o Canadá somou a primeira vitória neste Mundial e lidera à condição do grupo B com quatro pontos, mais um do que a Austrália e mais três do que a Nigéria. O resultado do encontro entre as anfitriãs e o conjunto africano será determinante para definir este grupo mas, na teoria, o primeiro lugar deverá ser discutido entre Canadá e Austrália na última jornada. Para a Rep. Irlanda é o fim de linha, com a segunda derrota noutros tantos jogos mas de novo a deixar uma boa imagem.

A mentira

  • O resultado ao intervalo era o reflexo de tudo aquilo que o jogo não tinha sido até aí. Por um lado, a Rep. Irlanda marcou, teve mais três grandes oportunidades para aumentar essa vantagem e, mesmo sem bola, conseguiu ir controlando as incidências da partida na sua zona de conforto. Por outro, o Canadá teve uma chance numa segunda bola após canto e pouco mais, num futebol perdido, sem ideias, sem rasgo e que nunca conseguiu ser superior. Após o autogolo nos descontos antes do intervalo, tudo mudou e as campeãs olímpicas mexeram bem para justificar aquele que ficou como resultado final.