910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Um "Palco Principal" para dar voz a um passado silencioso

Este artigo tem mais de 1 ano

A partir d'A Gaivota de Tchékhov, os SillySeason querem dar voz às narrativas perdidas ou esquecidas nos manuais de história. A nova criação estreia esta sexta-feira, no Centro Cultural Vila Flor.

Dalila Carmo faz parte de um elenco que também inclui Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva, João Cachola, Ricardo Teixeira e Rodrigo Teixeira
i

Dalila Carmo faz parte de um elenco que também inclui Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva, João Cachola, Ricardo Teixeira e Rodrigo Teixeira

ALIPIO PADILHA

Dalila Carmo faz parte de um elenco que também inclui Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva, João Cachola, Ricardo Teixeira e Rodrigo Teixeira

ALIPIO PADILHA

Em todas as épocas existiu caça às bruxas. Mulheres perseguidas, revoltas camponesas aniquiladas – e os seus fomentadores brutalmente julgados –, o tráfico de escravos, entre muitas outras formas de persecução e discriminação pelo corpo ou somente pela identidade individual que determinados grupos queriam deixar claro perante a sociedade. Que palco é que estas histórias ocupam? Qual o papel da arte no dar voz a estas narrativas? Impõem-se questões, sobretudo porque chegados ao presente, são muito aqueles que nunca tiveram direito a um papel de protagonista. É justamente daí que nasce Palco Principal, a nova criação dos SillySeason, que se estreia esta sexta-feira no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães e que depois circulará por algumas cidades de Portugal. O espetáculo marca também a primeira internacionalização do coletivo, sendo apresentado dias 30 novembro e 1 dezembro, no Festival Festlip, Rio de Janeiro, no Brasil.

Antes mesmo do pano levantar, o espectador é interpelado pelos criadores (que fazem o coletivo SillySeason) Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva e Ricardo Teixeira. Aborda-se a possibilidade de a comédia dar espaço a novas realidades, mesmo que isso se traduza num exercício penoso de olhar para o passado. “Não há novas realidades, há outras realidades”, diz um dos intervenientes. Será que a comédia tem espaço para diferentes narrativas? “Acho que a comédia evolui, como qualquer outra coisa. É preciso é pessoas que a façam, que a pensem, que trabalhem”, prosseguem. O que está por detrás do pano trará uma resposta. Dança-se ao som de Van Halen, Whitney Houston e Bon Jovi, em tom de celebração, ainda que marcadamente nostálgica – há, afinal de contas, uma peça em preparação. Palco Principal inspira-se no universo de Tchékhov, em concreto na peça A Gaivota. Além disso, a criação encerra uma temporada de espetáculos que, partindo de um clássico da dramaturgia europeia, tendem a “resgatar e inscrever narrativas perdidas na maior ficção de todos os tempos — a História”, explica o coletivo.

Como comédia, que não deixa de ser, o tom de Palco Principal é celebratório. Celebra-se o futuro dos ecossistemas e os novos discursos passam a fazer parte do seu dispositivo

ALIPIO PADILHA

Mas voltemos primeiro a Tchékhov. Na peça publicada em 1896 há uma crítica subjacente à sociedade e aqueles que ocupam os seus lugares de poder. “Tal como noutros espetáculos que fizemos há esta ideia de como é que estes clássicos ditam o nosso pensamento, a forma como nos relacionamos e, partindo disso, como é que podemos resgatar outros discursos que talvez daqui a cem anos já ocupem o seu espaço por direito”, salienta ao Observador Ricardo Teixeira. Neste palco, ressoam, portanto, as figuras da peça do dramaturgo russo: o escritor em conflito Treplev, Nina, atriz por quem está apaixonado e que irá protagonizar a peça que escreveu, bem como o famoso lago, cenário que assume um papel determinante em toda a trama. Mas são apenas pontos de partida. O que neste palco se discute é também uma crítica à sociedade atual e à forma como esta se organiza, mas sobretudo qual o papel da arte ao dar espaço às novas formas. “Com a nossa visibilidade e o nosso privilégio de dar voz, é como se estivermos a contribuir para derrubar muros e sair dessa ideia de que um clássico é intocável”, completa o ator e encenador.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A emancipação em palco

A ação prossegue e no meio de uma premissa de humor, não se descarta a tragédia. Há self-delusion, ciúmes que se criam entre os ocupantes deste espaço e conversas sobre as maiores banalidades da vida mundana. Pelo meio, fala-se de apoios às artes, de uma crise em permanência e das estéticas dominantes, nas quais se discute sobre as consequências do capitalismo. A certa altura, Aura da Fonseca, uma das atrizes, começa um monólogo personificando Nina, da peça original. Mas é o corpo trans que adjudica um outro discurso, uma outra presença, acima de tudo, a ocupação de um espaço que sempre foi interdito a muitas individualidades, precisamente pela questão identitária.

“Confesso que o que enfrento, aqui e agora, não me agrada. Vim, porque há vozes silenciadas a chamarem-me. Talvez sejam vossos filhes, vizinhes, parceires, amigues ou inimigues. Talvez haja alguém entre vós que me veja e entenda”, diz a atriz, enquanto nos transporta para essa outra condição. É um dos elementos importantes na criação desta peça: o coletivo entendeu que o texto deveria ser ele mesmo escrito por Aura. “Fazemos também uma autocrítica enquanto coletivo. Porque se há uma apropriação e queremos estar na crista da onda das questões que estão a borbulhar, temos mesmo de fazer essa reflexão, daí termos convidado a Aura para fazer a sua criação dentro da nossa”, explica o coletivo.

Procura-se a emancipação a partir desse mesmo palco – com o cuidado de dar o espaço correto e seguro para que estas narrativas possam viver e continuar ali. “Se houve um avanço, devemos sempre perguntar se já é suficiente e por isso é que queremos levantar esta discussão”, sintetizam. Além de Aura da Fonseca, Palco Principal conta com interpretações de Cátia Tomé, Dalila Carmo, Ivo Saraiva e Silva, João Cachola, Ricardo Teixeira e Rodrigo Teixeira. Entre recuos e avanços, discute-se então a ideia de uma comunidade em formação, quiçá um estado embrionário para aquilo que deve ser o teatro no futuro.

"Se há uma apropriação e queremos estar na crista da onda das questões que estão a borbulhar, temos mesmo de fazer uma reflexão"

ALIPIO PADILHA

O olhar que recai sobre Tchékhov não deixa, por isso, de ser relevante. “Muito provavelmente se ele rescrevesse hoje A Gaivota iria responder à anterior de uma forma assaz violenta, porque ao inscrever-se numa corrente naturalista e realista, o publico ia ao teatro ver pessoas iguais a si próprias, a viver a mesma vida mundana. Hoje a realidade mudou, e o exercício de fazer algo assim no presente é o de olhar para as outras realidades que existem mesmo na sociedade, mas que nem sempre têm a mesma visibilidade”, sustenta Ivo Saraiva e Silva.

O papel da tecnologia, a relação entre humanos e animais e as formas de identidades não binárias, sumariza o coletivo, são aspetos que transformam “os nossos desejos, as nossas formas de estar e amar na atualidade”. Ao mesmo tempo, explicam, tem impacto nas novas formas artísticas, que carregam um outro pluralismo discursivo. Na linha das últimas criações dos SillySeason, Palco Principal é uma peça assertiva no seu texto em que há sempre um manifesto em construção. Olha-se para o passado, mas pretende-se dar voz ao futuro. “Nós ainda somos os mesmos e vivemos”, diz o verso da canção de Elis Regina, cantada por João Cachola, a certa altura da peça. A verdade é que entre sermos os mesmos e estarmos abertos às “outras realidades” há um campo de potencialidades, onde voltamos à velha questão de “quem valida o quê?”.

Neste caso, e mais do que nunca, o palco é entendido como sítio de revolução. “Foi assim que se fez a História, mas comigo não”, diz Dalila Carmo numa das deixas. Derrubam-se os complexos e os cânones, por sinal, já bem decadentes. Como comédia, que não deixa de ser, o tom de Palco Principal é celebratório. Celebra-se o futuro dos ecossistemas e os novos discursos passam a fazer parte do seu dispositivo. “Voltaremos sempre ao lago para ver o nosso reflexo a desaparecer enquanto mudamos”, diz um dos atores: talvez seja essa pois a forma de começar a mudança. Resta saber quanto mais palcos se abrem ao futuro.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.