Em todas as épocas existiu caça às bruxas. Mulheres perseguidas, revoltas camponesas aniquiladas – e os seus fomentadores brutalmente julgados –, o tráfico de escravos, entre muitas outras formas de persecução e discriminação pelo corpo ou somente pela identidade individual que determinados grupos queriam deixar claro perante a sociedade. Que palco é que estas histórias ocupam? Qual o papel da arte no dar voz a estas narrativas? Impõem-se questões, sobretudo porque chegados ao presente, são muito aqueles que nunca tiveram direito a um papel de protagonista. É justamente daí que nasce Palco Principal, a nova criação dos SillySeason, que se estreia esta sexta-feira no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães e que depois circulará por algumas cidades de Portugal. O espetáculo marca também a primeira internacionalização do coletivo, sendo apresentado dias 30 novembro e 1 dezembro, no Festival Festlip, Rio de Janeiro, no Brasil.
Antes mesmo do pano levantar, o espectador é interpelado pelos criadores (que fazem o coletivo SillySeason) Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva e Ricardo Teixeira. Aborda-se a possibilidade de a comédia dar espaço a novas realidades, mesmo que isso se traduza num exercício penoso de olhar para o passado. “Não há novas realidades, há outras realidades”, diz um dos intervenientes. Será que a comédia tem espaço para diferentes narrativas? “Acho que a comédia evolui, como qualquer outra coisa. É preciso é pessoas que a façam, que a pensem, que trabalhem”, prosseguem. O que está por detrás do pano trará uma resposta. Dança-se ao som de Van Halen, Whitney Houston e Bon Jovi, em tom de celebração, ainda que marcadamente nostálgica – há, afinal de contas, uma peça em preparação. Palco Principal inspira-se no universo de Tchékhov, em concreto na peça A Gaivota. Além disso, a criação encerra uma temporada de espetáculos que, partindo de um clássico da dramaturgia europeia, tendem a “resgatar e inscrever narrativas perdidas na maior ficção de todos os tempos — a História”, explica o coletivo.
Mas voltemos primeiro a Tchékhov. Na peça publicada em 1896 há uma crítica subjacente à sociedade e aqueles que ocupam os seus lugares de poder. “Tal como noutros espetáculos que fizemos há esta ideia de como é que estes clássicos ditam o nosso pensamento, a forma como nos relacionamos e, partindo disso, como é que podemos resgatar outros discursos que talvez daqui a cem anos já ocupem o seu espaço por direito”, salienta ao Observador Ricardo Teixeira. Neste palco, ressoam, portanto, as figuras da peça do dramaturgo russo: o escritor em conflito Treplev, Nina, atriz por quem está apaixonado e que irá protagonizar a peça que escreveu, bem como o famoso lago, cenário que assume um papel determinante em toda a trama. Mas são apenas pontos de partida. O que neste palco se discute é também uma crítica à sociedade atual e à forma como esta se organiza, mas sobretudo qual o papel da arte ao dar espaço às novas formas. “Com a nossa visibilidade e o nosso privilégio de dar voz, é como se estivermos a contribuir para derrubar muros e sair dessa ideia de que um clássico é intocável”, completa o ator e encenador.
A emancipação em palco
A ação prossegue e no meio de uma premissa de humor, não se descarta a tragédia. Há self-delusion, ciúmes que se criam entre os ocupantes deste espaço e conversas sobre as maiores banalidades da vida mundana. Pelo meio, fala-se de apoios às artes, de uma crise em permanência e das estéticas dominantes, nas quais se discute sobre as consequências do capitalismo. A certa altura, Aura da Fonseca, uma das atrizes, começa um monólogo personificando Nina, da peça original. Mas é o corpo trans que adjudica um outro discurso, uma outra presença, acima de tudo, a ocupação de um espaço que sempre foi interdito a muitas individualidades, precisamente pela questão identitária.
“Confesso que o que enfrento, aqui e agora, não me agrada. Vim, porque há vozes silenciadas a chamarem-me. Talvez sejam vossos filhes, vizinhes, parceires, amigues ou inimigues. Talvez haja alguém entre vós que me veja e entenda”, diz a atriz, enquanto nos transporta para essa outra condição. É um dos elementos importantes na criação desta peça: o coletivo entendeu que o texto deveria ser ele mesmo escrito por Aura. “Fazemos também uma autocrítica enquanto coletivo. Porque se há uma apropriação e queremos estar na crista da onda das questões que estão a borbulhar, temos mesmo de fazer essa reflexão, daí termos convidado a Aura para fazer a sua criação dentro da nossa”, explica o coletivo.
Procura-se a emancipação a partir desse mesmo palco – com o cuidado de dar o espaço correto e seguro para que estas narrativas possam viver e continuar ali. “Se houve um avanço, devemos sempre perguntar se já é suficiente e por isso é que queremos levantar esta discussão”, sintetizam. Além de Aura da Fonseca, Palco Principal conta com interpretações de Cátia Tomé, Dalila Carmo, Ivo Saraiva e Silva, João Cachola, Ricardo Teixeira e Rodrigo Teixeira. Entre recuos e avanços, discute-se então a ideia de uma comunidade em formação, quiçá um estado embrionário para aquilo que deve ser o teatro no futuro.
O olhar que recai sobre Tchékhov não deixa, por isso, de ser relevante. “Muito provavelmente se ele rescrevesse hoje A Gaivota iria responder à anterior de uma forma assaz violenta, porque ao inscrever-se numa corrente naturalista e realista, o publico ia ao teatro ver pessoas iguais a si próprias, a viver a mesma vida mundana. Hoje a realidade mudou, e o exercício de fazer algo assim no presente é o de olhar para as outras realidades que existem mesmo na sociedade, mas que nem sempre têm a mesma visibilidade”, sustenta Ivo Saraiva e Silva.
O papel da tecnologia, a relação entre humanos e animais e as formas de identidades não binárias, sumariza o coletivo, são aspetos que transformam “os nossos desejos, as nossas formas de estar e amar na atualidade”. Ao mesmo tempo, explicam, tem impacto nas novas formas artísticas, que carregam um outro pluralismo discursivo. Na linha das últimas criações dos SillySeason, Palco Principal é uma peça assertiva no seu texto em que há sempre um manifesto em construção. Olha-se para o passado, mas pretende-se dar voz ao futuro. “Nós ainda somos os mesmos e vivemos”, diz o verso da canção de Elis Regina, cantada por João Cachola, a certa altura da peça. A verdade é que entre sermos os mesmos e estarmos abertos às “outras realidades” há um campo de potencialidades, onde voltamos à velha questão de “quem valida o quê?”.
Neste caso, e mais do que nunca, o palco é entendido como sítio de revolução. “Foi assim que se fez a História, mas comigo não”, diz Dalila Carmo numa das deixas. Derrubam-se os complexos e os cânones, por sinal, já bem decadentes. Como comédia, que não deixa de ser, o tom de Palco Principal é celebratório. Celebra-se o futuro dos ecossistemas e os novos discursos passam a fazer parte do seu dispositivo. “Voltaremos sempre ao lago para ver o nosso reflexo a desaparecer enquanto mudamos”, diz um dos atores: talvez seja essa pois a forma de começar a mudança. Resta saber quanto mais palcos se abrem ao futuro.