A data é evocativa. Estamos em 1523, dia 1 de maio, mas o que se diz é reflexo do tempo presente – e a data um piscar de olho à efeméride dedicada aos trabalhadores em todo o mundo. Fala-se de uma lógica mercantil, do mercado de trabalho, da opressão da classe burguesa, de ricos e pobres, de parentalidade, de géneros, de direitos e deveres de cada um. Fala-se, acima de tudo, de luta – essa “inquietação, inquietação”, citando José Mário Branco.
Na cama, deitada, está Inês Pereira (interpretada por David Costa, que se identifica como pessoa não-binária). Não quer trabalhar, muito menos viver uma vida subjugada aos “interesses do capital e do patriarcado”. “Rejeito o jugo da labuta, da tarefa e do afazer”, afirma como palavra de ordem. Passam-se 500 anos sobre a primeira apresentação de A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente. Nesta nova criação, o encenador Pedro Penim reescreve o original vicentino e transforma-o numa obra, claro está, ligada ao nosso tempo. Estreia-se dia 20 de outubro, no Teatro Municipal Garcia de Resende, em Évora, antes de seguir em digressão por outras salas de espetáculo nacionais. Já sexta-feira, dia 13, tem ante-estreia no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra.
Este é o terceiro espetáculo de uma trilogia dedicada à família, iniciada com Pais & Filhos, em 2021, a que se seguiu Casa Portuguesa, no ano seguinte. Na senda destas criações percursoras, A Farsa de Inês Pereira deita o seu olhar cáustico sobre alguns dos alicerces da sociedade contemporânea. São para desconstruir, possivelmente derrubar – mas lá chegaremos. Para já, importa a questão: que Inês Pereira pede o nosso tempo? A personagem que se apresenta aos nossos olhos podia bem representar um qualquer jovem do presente farto da precariedade, sem expetativas no futuro, e que diria em uníssono “isto assim não pode continuar”.
Inês Pereira é também figura política, com um quê de mártir. Sabe o lugar que lhe está reservado aos olhos da sociedade, assim como outras figuras que provaram ser capazes de enveredar por um caminho alternativo, até mesmo revolucionário. “O que não falta na História são valerosas padeiras!”, diz-lhe a mãe, Violante Pereira (Rita Blanco), evocando Brites d’Almeida, a famosa padeira de Aljubarrota. No meio de uma larga discussão sobre o papel que ocupamos na sociedade, Inês aclara a sua solução: casar com alguém rico, com possível forma de libertação.
“A explorar o explorador. A folgar, a ser artista, dormir até ao sol-pôr, mas com rendimento”, defende. Mantêm-se as falas em verso – no espírito vicentino (onde há texto original que se confunde com a nova versão), algumas das personagens de Gil Vicente e a narrativa de uma jovem destinada a casar para se salvar na vida. À medida que A Farsa de Inês Pereira se (des)constrói, assistimos a uma peça dominada pelo empoderamento feminino, onde “os homens são lixo” e sinónimo de uma tirania que se replica, há 500 anos como hoje. No seu lado mais kitsch há elementos que nos revelam essa convergência de estereótipos, nomeadamente um ecrã onde surge uma vela com um dedo do meio em riste que se derrete pelo pavio queimado. Há espaço para se falar de violência sexual, da vingança que as mulheres podem cogitar perante os homens e dos pretendentes que vão fazer parte da vida de Inês Pereira.
Uma trilogia para se questionar
A peça que agora chega aos palcos encerra uma reflexão maior sobre a família e o seu conceito estruturante. “A família continuava a interessar-me, sendo que desta vez me foquei na relação de mãe e filha e, ao mesmo tempo, falar da ideia da abolição do trabalho, como um dos pilares da sociedade do futuro”, explica ao Observador Pedro Penim. As peças, no seu conjunto, abordam a ideia de resistência a estruturas – as novas formas de pensamento feminista e queer em Pais & Filhos, o pós-colonialismo em Casa Portuguesa e, por fim o pós-trabalho – defende o criador. Em todos ecoa uma deixa da nova peça: “somos todos refugiados da família nuclear”. Os olhares propostos pela trilogia clarificam-se pelo permanente questionamento: “São estruturas perante as quais nos habituamos a olhar sem questionamento e que fazem parte da nossa vida de uma forma tão próxima e orgânica. Estes espetáculos não querem pôr isso em causa, tentam é colocar estes temas num sitio de discussão e reflexão”, salienta o encenador.
De regresso à Farsa de Inês Pereira impõe-se igualmente um pensamento sobre o livre-arbítrio e aquilo que uma vida de casada pode trazer de bom e mau. Inês conhece primeiro Diogo Bento que rejeita. Segue-se o cavaleiro Luiz Anrique da Mata, com quem se casa, mas sendo logo enclausurada pelo marido, que a remete ao papel de dona de casa. “Casar bem tem um preço”, diz Luiz. O desalento não é consolável, nem mesmo pela mãe, com quem vai estabelecendo uma relação de maior entendimento. À medida que a narrativa avança, a farsa de Inês torna-se numa espécie de manifesto, que é também uma carta ao futuro. Nem tudo são rosas. A morte e o sofrimento alude a uma ideia de esperança. “As pessoas lembrar-se-ão com gratidão de nós, as que estamos vivas agora… Sim, manas, que a nossa vida ainda não terminou”, realça Inês Pereira.
Através da revolta da moça quinhentista, e mesmo numa leitura contemporânea, solta-se um eco que acrescenta relevância à personagem de Gil Vicente. No momento que se vive – ampliado pelos debates sobre a precarização da vida, a falta de condições de trabalho e habitação, bem como as questões identitárias e de género postas em cima da mesa, o teatro, em especial esta trilogia, assumem (sem pudor) um pendor ideológico. Ainda assim, em momento algum, explica Pedro Penim, houve intenção na escolha do elenco como forma de evidenciar algumas destas questões de género. “É maioritariamente o elenco que já tinha trabalhado comigo na Pais & Filhos e quando escrevi esta peça, escrevi desde logo a pensar em quem iria interpretar. Se isso pode ter um eco em quem vê, entende-se, mas não tenho interesse em tornar isso uma questão. Se for pelas pessoas que vêm, que seja então uma forma de normalização”, explica.
Regressamos às suas temáticas, aí sim, refere, onde não esconde um seu engajamento. “As ideias que são convocadas não estão de todo esvaziadas de uma ideia até bastante engajada de agir politicamente através da arte. Os temas estão na rua e interessa-se que a peça possa sugerir algum tipo de transformação. Se isso é ativismo? Também é, mas nunca fugi disso”, explica Pedro Penim. No fim de contas, acrescenta, a figura de Inês Pereira aborda a questão de um diálogo intergeracional, que nem sempre é fácil, mas que se revela como urgência. O seu corpo, as suas crenças e tomadas de decisão são “altamente politizadas”, mas exemplares, sobretudo 500 anos volvidos e já muito distantes das ideias de Gil Vicente. Não podia ser de outra maneira, sublinha o encenador. Só assim é que as utopias se tornam possíveis.
A “Farsa de Inês Pereira” estreia-se no Teatro Municipal Garcia de Resende, em Évora, a 20 e 21 de outubro, seguindo depois em digressão por Portalegre (4 de novembro) e Setúbal (11 de novembro), e outros concelhos do país, em datas a anunciar, ao longo do ano de 2024. No dia 13 de outubro, o Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, recebe a antestreia da peça.