A certa altura, o falecido marido de Perpétua, Segismundo, surge como fantasma, para lhe dizer que esta se deve juntar à revolta incitada por Maria da Fonte e ficar assim do “lado certo da História”. Um apelo que se repetiu ao longo da história, nas mais diversas circunstâncias, mas que aqui diz respeito ao rescaldo da Revolução Liberal de 1820 e da Guerra Civil Portuguesa (1828-1834). Estamos em 1846, em pleno período conhecido como Cabralismo. O clima é de conspiração e de grande agitação política. O país, liderado por D. Maria II, tem agora de obedecer a um conjunto de medidas contestadas pelas massas populares.
É neste cenário que entramos na história de Maria da Fonte, a opereta escrita pelo compositor Augusto Machado (1845-1924), a partir de um libreto original da autoria de Batalha Reis, Gervásio Lobato e João Francisco de Eça Leal, estreada no Teatro da Trindade em 1879. Perdida no tempo, é agora recuperada pelo encenador Ricardo Neves-Neves, autor do libreto atual, que será apresentada dias 12 e 14 de novembro, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa.
Poder-se-ia dizer que partimos do particular para o universal e que o passado, neste caso, se confunde com a contemporaneidade. O clima inicial é de romaria e as intrigas são as típicas do “quem casa com quem”. Um lenço dos namorados de Viana do Castelo transporta-nos para o Minho e para a cultura desse região. Dança-se, bebe-se e joga-se às cartas na taberna. Já aí se cogitam críticas ao poder político e ao clero. Ao mesmo tempo, cortejam-se as raparigas e goza-se de uma certa liberdade de costumes. Há quem queira preservar os valores mais conservadores, como Perpétua; mas há também Maria que é divergente; bebe às horas que quer e quando lhe dizem que talvez esteja a passar dos limites responde em tom de ironia: “Estou a festejar a minha independência”. A sua figura é a de uma valquíria, forte e destemida. Há suspeitas de traição por parte do seu amante Ludovino (um agricultor rico) com a sua irmã, Joana. Mas surgem também ecos de uma conspiração entre o administrador local, Vilar, e o abade Cortições, que se subentende ser pai de Maria da Fonte e de Joana, para enviar os rapazes para o exército combater a ralé.
Em tempos de crise, revelam-se interesses particulares. A chegada do Exército Real traz novos decretos-lei que não colhem consensos. O aumento da carga fiscal, a obrigatoriedade militar para os homens e as novas leis para o enterrar dos mortos são gatilho para ares de revolta. Volta-se à questão sobre o lado certo da História em que se colocam estas figuras. Lá chegaremos.
A opereta Maria da Fonte é o segundo título recuperado pelo Laboratório de Ópera Portuguesa, criado em 2022 e sediado no CCB. Com direção musical de João Paulo Santos, a reescrita de Neves-Neves, bem como a sua encenação, admite – como é próprio do seu estilo – uma verdadeira suspensão de tempo. O que é atual ou passado pouco interessa. O jogo que se cria é mapeado por referências e valores de diferentes épocas. Mas nem aí a narrativa perde a sua pertinência histórica e temática.
Uma opereta para os tempos atuais
Na sua desenvoltura, fala-se de Marx, de propaganda e de se governar com “mão de ferro”. Já os estereótipos caídos por terra, esses dão asas a um clero que também é queer, a um exército que marcha como numa verdadeira parada gay e a uma história de mulheres empoderadas, que combatem de foice e martelo e que citam Beyoncé, claro está: “Who run the world? Girls”. Contudo, todos estes elementos, explica Ricardo Neves-Neves, não deixam de fazer jus ao espírito da peça. “No início, tinha dúvidas sobre como é que à volta da Maria da Fonte a comédia podia existir, mas há medida que fui investigando sobre a revolta e sobre esse período, e à medida que conheci outras operetas desta época, que se ligam inclusive ao cinema português na sua suposta época dourada dos anos 30, percebi que a liberdade para poder criar por cima deste tema era grande”, salienta. O humor ganha conotações que ultrapassam as linhas temporais.
Com inspirações na obra de Jacques Offenbach e de outras operetas conhecidas desta época, Maria da Fonte acaba, de alguma forma, por recuperar a importância de um género que foi sendo abandonado. A opereta, conhecida como pequena ópera de estilo leve, aproxima-se mais do teatro musical e do vaudeville, que não deixa de transparecer também elementos no teatro de revista. Para o maestro João Paulo Santos, que devolve a música à partitura de Augusto Machado, é preciso entender como “a opereta era um assunto de teatro e não de canto”, mas que ainda assim não deixou de ser um género famoso em Portugal. “O Eça de Queiroz abordava a opereta como uma arma de crítica social e segundo se sabe, ele chegou a tentar escrever um texto. A verdade é que nunca foi um género pensado para ultrapassar o seu tempo”, acrescenta.
Como género datado, João Paulo Santos considera ainda assim que, chegados a 2023, é preciso “sobretudo olha e rever o texto” e, dessa forma, não criar um total anacronismo. “Tal qual os sketches do Herman, existe a possibilidade de que daqui por 30 ou 40 anos, as pessoas já não entendam a piada nem os assuntos, porque eram relativos à ordem do dia. Era um género leve, de fácil adesão, mas foi caindo porque deixou de fazer contacto com a realidade.” A sua génese passou para o teatro de revista e para o cinema português. Chega até nós como género perdido, mas que, de certa forma, traz luz sobre uma época histórica no país, onde já se ensaiavam motes republicanos.
De regresso ao palco, estamos perante uma comédia em 3 atos, escrita em português, interpretada por oito solistas – Cátia Moreso, Luís Rodrigues, Marco Alves dos Santos, Inês Simões, Eduarda Melo, André Henriques, João Merino, Tiago Matos – e 10 atores – António Ignês, Juliana Campos, Rita Carolina Silva, Afonso Abreu, Afonso Lourenço, Guilherme Arabolaza, Miguel Cruz, Ricardo Morgado, Ruben Teixeira, Tiago Estremores – acompanhados pelo Coro do Teatro Nacional de São Carlos e a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Com 53 pessoas em palco, os olhares não deixaram de se concentrar na heroína popular que dá mote. Maria da Fonte não se demite da sua consciência social e nova versão devolve a importância desta revolta ao nosso imaginário, para que não a voltemos a esquecer.
“Sem complexos sobre a comédia, fomos brincar e jogar com a elasticidade das referências”, explica Neves-Neves. A dada altura, cita-se inclusive Ana de Castro Osório: “O que entendo por desenvolver livremente as qualidades afetivas na mulher é deixar-lhe o pleno direito da escolha, o direito sagrado de amar ou não amar, de casar ou ficar solteira, sem que isso represente uma vergonha”. Maria da Fonte não é Joana d’Arc, mas transporta consigo a importância omissa que as mulheres também tiveram na história do país. O seu confronto com as esferas de poder – como se sabe – originou uma revolta nacional que acabaria por mudar o rumo político do país. Nada como olhar para as suas próprias palavras, reescritas à luz dos tempos atuais: “Isto é um pequeno passo para uma mulher, mas é um grande passo para as gentes do Minho.” Quase 150 anos depois da estreia desta opereta, recupera-se o seu fôlego crítico e ganhamos, por fim, a história de uma heroína de carne e osso, onde não faltou a coragem de sonhar pela mudança.
A anteceder a esta estreia realiza-se uma semana que inclui um conjunto heterogéneo de iniciativas complementares ao espetáculo no CCB. A Semana Maria da Fonte a presenta um Mercado Minhoto e um ciclo de conferências votado ao papel multifuncional da mulher portuguesa no decurso da história.