A dois meses das eleições legislativas antecipadas de março, quisemos antecipar no primeiro “Justiça Cega” do Ano Novo algumas das propostas dos dois principais partidos para a área da Justiça. Com os programas eleitorais do PS e do PSD ainda em construção, as respostas de Alexandra Leitão (PS) e de Paulo Rangel (PSD) dão pistas para o futuro.

“Temos de ter uma Justiça célere e transparente”

Para começar, e com a Operação Influencer como pano de fundo, ambos rejeitam alterações de fundo na configuração institucional do Ministério Público (MP), nomeadamente na nomeação do procurador-geral da República e na alteração da composição do Conselho Superior do MP.

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Alexandra Leitão e Paulo Rangel não querem colocar em causa a autonomia externa do MP face ao poder político mas defendem que o princípio da magistratura hierarquizada (em que os dirigentes do MP podem e devem ordenar estratégias processuais) seja respeitado e afastam a ideia de que um procurador possa ter alguma espécie de equiparação à independência dos juízes.

Ambos concordam que a alteração do Estatuto do MP em 2019, promovida pela ex-ministra Francisca Van Dunem, causou “ruído” e “ambiguidade”, com Alexandra Leitão a dizer mesmo que foi uma “alteração infeliz”. Tudo porque a nova redação veio abrir a porta para que se colocasse em causa o direito do próprio procurador-geral da República dar instruções processuais. Apesar do Conselho Consultivo do MP já ter dito que nada de substancial foi alterado, falta ainda uma decisão do Supremo Tribunal Administrativo para clarificar cabalmente a questão.

“Estamos à espera desta interpretação. Se a interpretação for a de que exista uma autonomia interna semelhante à que tem um juiz… teremos de ver. Acho que não deve ser assim. Porque a própria dinâmica da atividade de uns [juízes] e de outros [procuradores] não é a mesma. Tem de haver uma hierarquia [no MP]. A própria Constituição, apesar de ter optado por um modelo de magistratura do Ministério Público com determinadas características, diz que ela é autónoma, mas hierarquicamente subordinada”, afirma Alexandra Leitão.

Paulo Rangel concorda e acrescenta que “há uma dialética” entre o procurador titular dos autos e a sua hierarquia. “Não é uma pessoa sozinha que vai fazer a avaliação… Há uma dialética, um trabalho de equipa e uma responsabilidade que tem de ser partilhada”, diz.

Leitão e Rangel admitem que um incremento de um maior escrutínio parlamentar da actividade do MP pode ser positivo. Tomando como referência o relatório anual que o provedor de Justiça tem de apresentar anualmente na Assembleia da República, os dirigentes do PS e do PS defendem um modelo equiparado.

“Uma intervenção anual no Parlamento para apresentar um relatório de actividades anual não seria uma solução errada”, afirma Alexandra Leitão.

“Vejo vantagem na apresentação um relatório anual da Procuradora-Geral da República ao Parlamento”, concorda Paulo Rangel. O eurodeputado do PSD que se deve clarificar na lei a ideia de que o mandato do procurador-geral da República é único.

Rangel defende mais poderes para os juízes. Leitão não quer colocar em causa presunção da inocência

Sobre medidas que permitam atenuar a disparidade muito significativa que existe no tempo médio de resolução dos processos de criminalidade comum (um ano) face à resolução dos casos de corrupção (superior a dez anos), apesar de ambos rejeitarem os megaprocessos, verificou-se alguma divergência de ideias.

Paulo Rangel, por exemplo, é a favor do reforço dos poderes dos juízes para combater as manobras dilatórias e promover uma maior celeridade. “Temos que dar processualmente mais poderes aos juízes. O juiz tem que ter mais autoridade sobre o processo e com mais flexibilidade”, diz.

“Há imensas matérias em que os juízes deviam ser mais expeditos. Por exemplo, afastando manobras claramente dilatórias, circunscrever o número de testemunhas aceites em julgamento, etc.”, tudo para combater a “perceção de falta de celeridade” que faz com que a “justiça nem sempre apareça como confiável aos olhos das pessoas.”

Questionado sobre os cerca de quarenta recursos que José Sócrates já apresentou nos autos da Operação Rangel, e sem que o caso tenha chegado ainda a julgamento, Rangel concorda que esse é um bom exemplo de como a falta de uma decisão “cria danos à democracia”.

Alexandra Leitão, por seu lado, concorda que tal disparidade é uma realidade mas não quer avançar com explicações. “Era preciso fazer uma análise muito cuidadosa e perceber o porquê dessa disparidade, “diz.

Uma coisa é certa: “não creio que a celeridade processual possa ser obtida à custa de uma redução de garantias dos cidadãos. Eu queria era que todos tivessem essas garantias, e que muitas vezes não conseguem até por razões económicas, e não que elas fossem eliminadas”, afirma.

Por exemplo, Alexandra Leitão admite olhar para propostas concretas mas vê com “alguma dificuldade” que possa ser possível o cumprimento da pena, mesmo após dupla conforme”. Ou seja, após uma condenação da primeira instância ser confirmada por um tribunal da relação.

“Os portugueses têm a perceção de que não há um combate eficaz à corrupção”

Já sobre a forma com os portugueses percepcionam a Justiça, o diagnóstico não é muito diferente — e os grandes processos acabam por contaminar tal perceção.

“Se nós falamos no caso BES, se nós falamos no caso José Sócrates, o que fica é a ideia de que não há um combate eficaz à corrupção, independentemente de haver alguma corrupção aí, que até pode não haver nenhuma. Mas, de facto, se as coisas fossem decididas em três ou em quatro anos — já contando com as instâncias de recurso — o que acontecia é que as pessoas confiariam mais”, diz Paulo Rangel.

“Mas não acho”, acrescenta “que os portugueses pensem que justiça portuguesa é corrupta ou que os juízes ou os procuradores não atuem de acordo com a lei. Eu acho que essa confiança existe. A falta de confiança tem muito a ver com a celeridade e com a sensação de que relativamente a pessoas com poder na sociedade, no fundo, nunca nada se decide — o que, para quem está a ser julgado, é verdadeiramente uma sentença antecipada e que, muitas vezes, não é justificada “, enfatiza.

Alexandra Leitão concorda. Citando um estudo de perceção da DECO de 2021 sobre a confiança dos portugueses nas principais instituições, a ex-ministra da Administração Pública diz que a “Justiça era a menos bem qualificada”, atrás do “Governo, a Assembleia, os partidos, o Sistema Nacional de Saúde, o Serviço Nacional de Saúde e a Escola Pública.”

Tal percepção tem várias causas, nomeadamente a falta de transparência. “A transparência no sentido de compreensibilidade e publicidade das decisões e das estatísticas. O cidadão médio tem muita dificuldade em compreender as decisões judiciais. O direito é uma ciência e uma técnica, e, portanto, tem o seu jargão, mas também é uma dimensão de serviço público”, diz.

Daí que Alexandra Leitão defenda a “publicação de estatísticas detalhadas na área da justiça sobre tempo médio de duração dos processos. Tribunal a tribunal, caso a caso…. acho que isso contribuirá também para um incremento do escrutínio — e o escrutínio não tem nada de mal”, diz.