Arnaldo Trindade, histórico editor de música e fundador da Orfeu, morreu aos 89 anos, anunciou esta segunda-feira a família nas redes sociais, sem adiantar mais pormenores. Numa mensagem publicada na conta de Facebook de Arnaldo Trindade pode ler-se que o velório será na Igreja de Cristo-Rei, no Porto, a partir das 16h30 de terça-feira, com o funeral a realizar-se na quarta-feira, às 10h.

Fundador da editora Orfeu em 1956, Arnaldo Trindade convidou “vários poetas e prosadores a gravarem os seus trabalhos, ditos pelos próprios: Miguel Torga, José Régio, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Daniel Filipe, Aquilino Ribeiro”, entre outros, como se pode ler na biografia publicada no livro de poesia Jogos de Xadrez e da Vida, com que se estreou no género, em 2013.

“Dedicado à música e ignorando ostensivamente a PIDE, Arnaldo Trindade, desde finais da década de 50 e até meados da de 80, pela Orfeu produzia o melhor da música portuguesa: José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Sérgio Godinho, Fausto, Vitorino, Fanhais, produções José Mário Branco e José Niza”, pode ler-se no mesmo texto biográfico. É na Orfeu, que funcionou até 1983, que Trindade lançou centenas de discos e que José Afonso e Paulo de Carvalho editaram, por exemplo, Grândola, Vila Morena e E Depois do Adeus, respetivamente, as duas canções que se viriam a tornar senhas da revolução.

A editora acabaria por ficar associada sobretudo à obra de José Afonso, com quem Arnaldo Trindade começou a trabalhar em 1968. “E quem tinha o Zeca Afonso tinha tudo”, recordou numa entrevista ao jornal Público, em 2011. “Na altura ele tinha acabado de fazer o EP com os Vampiros, que foi o primeiro disco dele proibido. Passado uns tempos fez outra obra, o Cantares de Andarilho, e nenhuma editora quis gravar, por receio de o proibirem. [Eu] Era um jovem e achava que se deviam fazer as coisas”, contou, em 2012, ao jornal i, numa entrevista disponibilizada no site da Associação José Afonso. “Não comungava totalmente com as ideias do José Afonso. Claro que também não era a favor da situação vigente. Sempre fui um social-democrata. Como o José Afonso, era adepto de um mundo melhor. Aceitei gravar o álbum, contra tudo. Era tão bom que não devia ficar encalhado. Ele foi logo passar uns dias ao Porto.”

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Pela Orfeu saíram discos de José Afonso como “Contos velhos, rumos novos” (1969), “Traz outro amigo também” (1970), “Cantigas do Maio” (1971), “Eu vou ser como a toupeira” (1972), “Venham mais cinco” (1973), “Coro dos tribunais” (1974), “Com as minhas tamanquinhas” (1976), “Enquanto há força” (1978), “Fura fura” (1979) e “Fados de Coimbra” (1981).

Pela editora foram lançados outros discos influentes da época, como “10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte”, de José Cid, “O Canto e as Armas”, de Adriano Correia de Oliveira, “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, para além de vários trabalhos de Quim Barreiros, entre tantos outros.

Arnaldo Manuel de Albuquerque Trindade nasceu na freguesia do Bonfim, a 21 de setembro de 1934, oriundo da burguesia portuense, tendo frequentado o Liceu Alexandre Herculano, na cidade onde nasceu. “Sempre fui burguês liberal mas nunca um ingénuo. Queria um país melhor, diferente do mofo a que então cheirava”, disse à Notícias Magazine, em 2019.

Com 19 anos, depois da morte do pai, “optou por seguir a tradição familiar em detrimento da manutenção dos seus estudos académicos”, como se lê na mesma biografia, que recorda as viagens de Trindade por países como Inglaterra, França e Estados Unidos da América e a constatação que teve da “necessidade de evolução” do Portugal da ditadura do Estado Novo.

Além de ter sido um dos mais importantes editores de música portugueses, Trindade teve uma vida profundamente ligada à cultura da cidade: foi sócio do Cineclube do Porto e um dos fundadores do TEP – Teatro Experimental do Porto. “Ia jantar todas as segundas ao Escondidinho com o Manoel de Oliveira, o José Régio, o Alberto Serpa, o António Lopes Ribeiro”, recordou ao Público. A loja Arnaldo Trindade, frente ao Café Majestic, na Rua de Santa Catarina era então um local de culto dos jovens da cidade. Em 2012, Arnaldo Trindade foi distinguido com a medalha municipal de mérito pela Câmara Municipal do Porto.

Escreveu três livros de poesia: Jogos de Xadrez e da Vida (2013), Commedia Dell’Arte (2015) e Nuvem sem água, chuva não chora (2022), todos publicados na editora Estratégias Criativas.

“Arnaldo Trindade foi uma das figuras mais importantes da música em Portugal”

Numa nota de condolências publicada no site da Presidência da República, Marcelo recordou como “uma das figuras mais importantes da música em Portugal entre as décadas de 1960 e 1980”. “Dar a ouvir é tão importante como compor, tocar ou cantar, e nessa medida Arnaldo Trindade foi uma das figuras mais importantes da música em Portugal entre as décadas de 1960 e 1980”, pode ler-se na referida nota.

Marcelo Rebelo de Sousa destaca ainda que “a sua ousadia e o seu gosto marcaram um tempo na música portuguesa e marcaram o país muito além da música”. “Fundador da editora Orfeu, deu-nos a ouvir José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Sérgio Godinho ou Fausto, e foi através dele que ouvimos também música popular e música clássica, fado e pop, e a voz dos poetas, começando com Miguel Torga, em 1956”, refere o texto do chefe de Estado, que envia ainda “sentidas condolências” à família.