Estamos perante uma modesta casa isolada na localidade Leenane, uma pequena vila na costa sul da Irlanda. Não parece haver um tempo definido. Tanto podemos estar algures nas primeiras décadas do século XX como no seu final. Há elementos anacrónicos e uma frieza inerente ao espaço remetido entre aquelas paredes. Maureen (interpretada por Paula Lobo Antunes), uma mulher solteira na casa dos 40, vive com a mãe Mag (Valerie Braddell). O ambiente familiar é marcado por uma certa melancolia. As irmãs de Maureen casaram e poucas notícias trazem à vida desta mãe e filha, cuja relação é de codependência. Mag, doente e quase inválida, tiraniza, exige atenção, e mostra sinais de alguma demência e esquecimento. Já Maureen, que cozinha, trata casa e das refeições de Complan da mãe, assume uma certa atitude vingativa e de indiferença. É sobre o isolamento e a opressão a que estas duas mulheres estão sujeitas que trata a peça do dramaturgo e cineasta Martin McDonagh (no cinema escreveu e realizou, por exemplo, Os Espíritos de Inisherin e Três Cartazes à Beira da Estrada), A Rainha da Beleza de Leenane. Chega esta semana ao Teatro da Trindade, em Lisboa, numa encenação de Sandra Faleiro 8de 15 de fevereiro a 31 de março).

À medida que a ação se desenrola em palco, surgem ecos de um tempo sombrio, marcado pelas dificuldades económicas, pela solidão e o desafio de manter uma vida equilibrada em família. O retrato é irlandês – marcado necessariamente pela visão do anglo-irlandês McDonagh –, mas podia também ser espanhol, italiano ou português. “Não deixa de ser uma peça que tem ecos nos países que em certas épocas foram marcados pelo êxodo rural, a emigração e as dificuldades económicas no sustento das famílias”, assume Sandra Faleiro. Foi, desde logo, este elemento transmutável às diferentes realidades que interessou à encenadora para criar a sua própria versão da peça, originalmente situada na década de 1990.

“Interessava-me que existissem certos anacronismos para que estas ressonâncias pudessem existir. Tal como os irlandeses, também nós somos um país de emigrantes e vivemos numa sociedade onde existe este tipo de melancolia em relação ao passado”, sintetiza Sandra Faleiro. A realidade é crua, aproximando a peça de um certo realismo literário, mas dá-se espaço à utopia, ao onírico e à sensação de uma tragédia eminente. Para falar desta relação disfuncional, o dramaturgo escolhe precisamente o padrão repetitivo do ritmo quotidiano, em que nada parece mudar e onde também não se anunciam possíveis revoluções. Numa parede da casa, um velho dito irlandês: “May you be in heaven half an hour before the devil knows you’re dead (“Que estejas no céu meia hora antes que o diabo saiba que estás morto”, em tradução livre), em que se expressa o desejo de uma morte rápida e pacífica, sintetiza a vivência. Aquele dia-a-dia parece apenas um lento e penoso aproximar da morte.

No entanto tudo muda. O isolamento que domina esta vivência de casa é subitamente interrompido pela visita de um antigo pretendente de Maureen, Pato Dooley, um homem que transporta o “sonho americano”, que está farto de trabalhar em Inglaterra e quer formar uma família, e do seu irmão mais novo, Ray Dooley, habitante da aldeia, uma espécie de espelho destas duas mulheres e do que elas representam para os habitantes de Leenane. A entrada em cena destas duas personagens vai fazer com que tudo mude num jogo de subversão, expectativa, traição e mentira.

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Sonhos perdidos

Por momentos voltamos à infância e às memórias felizes de Maureen. Nesta comédia negra, a que se juntam os atores Nuno Nunes e Vicente Gil, explora-se um conflito geracional e motiva-se uma reflexão sobre os muitos sonhos traídos pelo destino. Pato Dooley é o homem que se viu forçado a sair do país em busca de um futuro risonho. Maureen, a mulher que ficou presa a uma condição de cuidadora. “Para que serve o irlandês?”, questiona Mag no início da peça, serve de mote para se falar na história de um país tantas vezes marcado pela ideia de uma dupla salvação possível: fugir para Inglaterra ou enveredar numa viagem até aos Estados Unidos. Em ambos os lugares, subsiste o sonho recorrente de encontrar um sítio melhor para viver e trabalhar. “Acima de tudo isso, é uma peça que nos recorda como somos todos estrangeiros em algum lugar ou numa determinada situação das nossas vidas”, realça a encenadora.

Desde a sua primeira apresentação, em 1996, que A Rainha da Beleza de Leenane gerou controvérsia pela dureza com que retrata as personagens. É a primeira obra da chamada Trilogia de Leenane, de McDonagh, a que se seguem A Skull in Connemara e Oeste Solitário. Em todas, o dramaturgo explora condição socio-económica do país, a sua cultura e tradições, a partir de um lugar familiar, onde o diálogo com a religião é também um dos elementos que marcam o quotidiano das famílias. A partir da sua leitura, explica Sandra Faleiro, é possível olhar para estas personagens que são, ao mesmo tempo “cómicas e trágicas” e cujas relações humanas se desenrolam de “forma surpreendente, que nos leva a mudarmos a opinião que tínhamos à partida sobre as mesmas enquanto espetadores”.

Já na narrativa que se constrói poderia até ser uma espécie de conto de fadas invertido, sugere a encenadora. “Há sempre esse lado romântico, de sonhos perdidos e do príncipe que chega para salvar o dia, mas nem sempre isso acontece, é preciso olharmos para a realidade de forma mais distante”, completa a encenadora. Vive-se, até ao fim, uma luta com a morte e a despedida. No fim de contas importa o amor que se gera pela empatia, pela forma como humanamente precisamos uns dos outros. Resta saber se algo muda realmente na vida destas personagens depois do reencontro e possível reconciliação com o passado.