Não é por acaso que, por mais do que uma vez, o italiano Enzo Cucchi (1949) foi descrito como poeta e mago. Contador de histórias nato, influenciado pela tradição oral, este artista – que se apresenta pela primeira vez em Portugal de forma antológica – tem assumido a postura de um alquimista perante a matéria. O seu corpo de trabalho, que deambula entre o desenho, a pintura e a escultura, invoca mitos e referências históricas, mas é na plasticidade que encontra o seu desígnio artístico. “Quando olhamos para uma obra de arte devemos ter sempre o poder de reimaginar, porque entramos num território aberto às diversas interpretações”, diz. Para dar a conhecer o seu universo pictórico, simbólico e figurativo, a Culturgest, em Lisboa, inaugurou esta sexta-feira, dia 16, duas exposições: Mezzocane, que reúne uma seleção alargada de obras, produzidas desde a década de 1980; e ainda Il Libraio e l’artista, onde se reúne trabalhos que desenvolveu na área da produção gráfica.
Centramo-nos na sua produção plástica: entre as cerca de 180 peças que compõem a exposição Mezzocane, encontramos desenhos, pinturas e esculturas num labirinto imagético que o próprio ajudou a construir, juntamente com o curador Bruno Marchand. Na sua imposta deambulação, os espaços vazios são silêncios face a uma composição polifónica e operática. Trata-se de uma mostra multiforme que não só reforça a singularidade identitária do artista, como explica o curador, como abandona a ideia de que a arte transporta em si uma mensagem. “Todo o tipo de leituras são uma espécie de postura autoritária sobre as peças. Por oposição a isso, este artista quer que a nossa sensibilidade e predisposição no momento de olharmos para as peças seja o que faz realmente a ligação com a nossa capacidade de imaginar”, realça Bruno Marchand.
A explicação para esta postura é histórica e elucida muito do seu percurso como autodidata. Desde o final dos anos 70 que Enzo Cucchi se tornou numa das figuras proeminentes do chamado do movimento Transavanguardia, neologismo com que o curador Achile Bonito Oliva batizou a arte neo-expressionista que despontava naqueles anos, e que não só reintroduzia o lado figurativo na pintura e na escultura, como surgia também em resposta face à arte minimalista e conceptual que tinha ganho espaço. Junto de Sandro Chia, Francesco Clemente, Nicola De Maria e Mimmo Paladino, o movimento tornou-se conhecido internacionalmente ao longo da década seguinte, com diversas mostras itinerantes, e pela participação na Documenta 7, em 1982.
Voltamos às galerias da Culturgest. Em Mezzocane salta desde logo à vista a ligação com três dimensões que facilmente associamos a Itália: a religião católica, as marcas da Antiguidade Clássica e as referências ao mundo rural — este último elemento bem presente na vida do artista, nascido no seio de uma família de camponeses em Morro d’Alba, na província de Ancona. Ligado à poesia e interessado na destruição das tradicionais convenções expositivas, as suas obras são apresentadas de forma livre, sem seguirem um arco cronológico, e dão conta do seu olhar provocador e de sátira constante. Cucchi ora desconstrói (e sexualiza) a imagem de figuras religiosas, como Jesus Cristo ou a Virgem Maria, como se apodera de figuras mitológicas para as colocar num outro estado de graça – muitas vezes em situações que se diriam moralmente reprováveis. Nas muitas representações, repetem-se ainda animais, figuras humanas e muitas caveiras. “Por mais diferentes que possamos ser entre nós, todos os humanos possuem uma caveira. É um elo inato de ligação que todos conhecemos”, sustenta o artista.
Acima de todas as leituras que se possam fazer, a sua obra é prova de uma rotura com “a vigência disciplinar”, sintetiza Bruno Marchand. “Perante a erosão que a arte moderna foi sofrendo, que desaguou em muitos casos em telas brancas com poucos apontamentos, a obra do Enzo Cucchi começou a fundir técnicas e o artista não se mostrou de todo interessado numa conceptualização da arte, daí o regresso a este lado figurativo, bem como ao trabalho manual próximo dos materiais que vêm da terra”, completa o curador em entrevista ao Observador.
Itália revisitada
Na cerâmica de Faenza, no vidro de Veneza, mas também no bronze e nas cores que coloca nas suas telas, a obra do artista italiano é também uma revisitação onírica a essa Itália do pós-guerra. É igualmente uma obra que joga com os valores e as crenças tradicionais. O título da mostra remete, aliás, a uma lenda – passada de geração em geração – que descreve a prática de um povo medieval que, para intimidar os forasteiros, cortava um cão ao meio que empalava nos caminhos por onde estes teriam de passar.
De regresso à contemporaneidade, o seu corpo de trabalho é também um comentário face à produção artística atual. “A maior parte da arte que vemos hoje é decorativa, muitas vezes com esse chavão de que é imersiva”, refere Enzo Cucchi. Embora não refute a ideia de que as suas obras também possam ter esse lado decorativo, o italiano contrapõe com a ideia de que existe um excesso de mensagens que se tentam propagar à partida, sem que haja do lado do espetador a capacidade livre e espontânea de interpretar. Interessa-lhe por isso a noção de perspetiva, na forma como apresenta as obras no espaço – nomeadamente nas muitas peças de canto que, diz, “ajudam a formar esse percurso” – como no entendimento do que estas nos transmitem quando as olhamos.
Ainda no domínio da forma, dá primazia ao desenho – um “estágio primário” para qualquer obra sua – sem o qual não haveria técnica para outras derivações estéticas, desde logo, a pintura. Da mesma forma, olha para as questões arquitetónicas dos espaços onde expõem, nos quais é preciso haver silêncio e a capacidade de cada visitante se perder na sua constelação de imagens. Só aí surge, de forma clara, o seu interesse pelos signos que compõem um universo povoado por lendas, figuras misteriosas, sonhos e pesadelos recorrentes, tradições regionais e expressões folclóricas.
“Quando olhamos para a sua obra como conjunto percebemos que estamos perante um poeta, com uma notável capacidade de fazer ligações entre imagens, e que não está interessado num discurso feito sobre as suas criações”, acrescenta o curador. Com uma poética própria, devemos olhar para Cucchi como um artista afeto e comprometido com a prática de criar e não como alguém que quer transmitir algo muito concreto. “Quando escreve está a escrever, quando pinta está a pintar, quando esculpe está a esculpir”, completa Bruno Marchand.
Contracorrente e insubmisso, a sua arte está impregnada de uma poética que está sempre em movimento. A viagem que propõem tem um início e fim – a morte acompanha-o sempre – mas todo o percurso entre os dois pontos é feita pela por aqueles que se atrevem a viajar com a sua própria imaginação. No fundo, como diria o próprio artista, viajamos sempre que nos atrevemos a sonhar.