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“Manuela Rey is in da house”: uma biografia performativa contra o esquecimento

Este artigo tem mais de 6 meses

No Teatro Nacional de São João, no Porto, uma homenagem ao teatro e a todos os nomes que se ficaram pelos caminhos da história durante o século XX. Esta sexta-feira acontece a última apresentação.

Para o encenador de "Manuela Rey is in da house" (protagonizada por Mariana Carvalhal, Rafaela Sá, Raquel Crespo e Teresa Vieira), a atriz representa “a união de que muitas vezes sentimos falta”
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Para o encenador de "Manuela Rey is in da house" (protagonizada por Mariana Carvalhal, Rafaela Sá, Raquel Crespo e Teresa Vieira), a atriz representa “a união de que muitas vezes sentimos falta”

Para o encenador de "Manuela Rey is in da house" (protagonizada por Mariana Carvalhal, Rafaela Sá, Raquel Crespo e Teresa Vieira), a atriz representa “a união de que muitas vezes sentimos falta”

As memórias são como uma mala de viagem: concentram o pequeno e o grande detalhe, mesmo quando não se podem controlar. Não as querendo, bloqueiam-se, retirando-lhes a possibilidade do excesso, ou de um possível espaço para este. É exatamente isso que vemos no centro do palco: uma bagagem de grande porte, que de perto parece uma caixa de transporte, mas ao longe reduz-se a um retângulo cinzento. Abre-se no escuro, mas um foco de luz desperta aquilo que nela trazia: uma mulher envolvida em florados verdes, com pequenos ornamentos e um vestido de folhos que nos fazem duvidar se ali criava raiz. É Manuela Rey. Ou pelo menos, uma de todas as Manuelas que viveram em si até meados de 1966, ano da sua morte. Ou da morte que consta, aos 23 anos, com tuberculose, levada para o Cemitério dos Prazeres, situado em Lisboa. Por estes dias, a Manuela, que nasceu na década de quarenta, em Mondonhedo, no norte da Galiza, (e todas as Manuelas que nela habitaram) subiu ao palco.

Não foram parcas as vezes que se confundiu o nome de Manuela com Amélia (Amélia Rey Colaço), mas são poucas as que Manuela Rey é reconhecida como a primeira atriz galego-portuguesa que integrou o primeiro elenco “estável” do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), em Lisboa. “Nenhum de nós, no teatro galego ou português, tinha memória dela. Foi importante recuperá-la e investigá-la, porque um país é aquilo que lembramos como sociedade, mas também aquilo que decidimos esboçar”, explica Fran Núñez, encenador da peça de teatro em exibição.

Esta é uma história que faz parte do passado, mas que se mostra um mistério por desvendar até ao presente. Não é uma história que sobreviva em ruínas. E tão pouco será um edifício com alicerces gigantes. Mas faz parte daquilo a que se chama casa. A casa de Manuela Rey.

[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.]

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Em palco, o elenco joga à macaca com uma pedra – sempre a mesma. Fazem-se movimentos quadrados, todos eles ao “pé-coxinho”. As atrizes (Mariana Carvalhal, Rafaela Sá, Raquel Crespo e Teresa Vieira) — saltam de quadrado em quadrado e percorrem as pontas do palco. Manuela – uma delas — não larga a sua pedra, que é parte da sua casa. Mesmo quando se mudou para Lisboa dizia que lá não havia pedras como aquela. De um lado para outro repetem os movimentos (Mariana Carballal e Xosé Lois Romero). Ouvem-se razões e porquês de tudo se concentrar numa pedra, uma casa. Junta-se um ator (Nuno J. Loureiro), talvez seja o pai que perdeu ainda em criança. Ou os seus desamores que tanto nutriam em si.

Manuela Rey era a voz do Teatro Nacional. Uma “mulher-lírio” que com a música, a poesia, o teatro e a sua escrita transformava

Entram e saem depois fazer aquele movimento quadrangular mecanizado de uma forma cada vez mais rápida e ritmada. Param no centro. Seguem-se respostas de Paula Ballesteros, arqueóloga colaboradora do Centro Superior de Investigação Científica INCIPIT/CSIC. Deixa-se mostrar do lado esquerdo do palco, junto a um púlpito e é lá que concentra a função de narradora. “A tua memória é como um edifício em ruínas, pedras soltas, pedaços do que um dia foi uma vida”, lê.

Esta não só é a casa, como é o corpo de Manuela. Para o encenador de Manuela Rey is in da house a atriz representa “a união de que muitas vezes sentimos falta”. Se o começo pareceu ser “um fantasma”, uma biografia publicada um ano após a sua morte, alguns artigos de jornais e referências nos arquivos do TNDMII permitiram a Fran, juntamente com Paula Ballesteros, articular este projeto: “consideremos isto a vida, o “esboço” e o trauma da sua morte prematura. Melhor, vejamos a bravura por se tornar uma figura nobre do Teatro Nacional e a fantasmagoria, do que era, poderia ser, ou do que se sabe que foi”, continua o encenador e ator galego.

São poucos os fragmentos documentados que nos contam a história da atriz. São muitas as pontas soltas de uma menina mulher, que aos seis anos deu os primeiros sinais daquela que seria a sua profissão em adulta; de uma menina-mulher que queria muito sentir-se em casa, na sua aldeia, mas que nunca mais teve oportunidade de lá voltar. “Se ela não pode voltar a casa, que um pedaço da sua casa volte a ela”, termina Paula Ballesteros.

Para as viagens virtuais de Fran Núñez a um tempo desaparecido – o da atriz — não é necessária uma perspicácia especial para perceber que as suas criações distendem umas pelas outras. A homenagem ao teatro que faz a partir da história da atriz e a forma como celebra a vida, o talento e a coragem integram parte daquilo que Fran sempre nos proporciona: uma festa em palco. Se todo o elenco passa a ser Manuela Rey, nós – os espetadores – libertamos Manuela.

Manuela Rey era a voz do Teatro Nacional. Uma “mulher-lírio” que com a música, a poesia, o teatro e a sua escrita transformava. Os elogios que se repetem no meio teatral, onde a sua serenidade, inteligência e humanidade nunca passaram despercebidas remetem para uma junção de intuição, inteligência e perfeição na arte de representar. Ela não se ficava pelo texto e pela escrita. Chamavam-lhe mulher-lírio pela sua “beleza”, a sua “elegância” e pela sua fragilidade no palco. É um lírio, “o que desponta e cresce, à luz da manhã que a soma”, ouve-se na voz de Rafaela Sá, acompanhando a peça do início ao fim. Este é o tema do último poema que Manuela Rey recitou em palco, antes de morrer — um poema que norteia grande parte do espetáculo, tal como explica Fran.

De Leão a Lisboa, entre grandes distâncias, concentravam-se Palência, Bragança, Valença, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Régua e Porto, lugares pelos quais Manuela passou e que faziam parte do mapa da companhia itinerante a que pertencia.

O espetáculo que este ano se celebra no Teatro Nacional de São João e que repete apenas mais um vez, esta sexta-feira, 17, é uma biografia performativa de Manuela Rey, mas, mais do que isso, é um resgate. É uma homenagem ao teatro e a todos os nomes branqueados pela história durante o século XX. Não se sabe por que motivo Manuela Rey foi um desses casos, mas “o teatro é uma profissão efémera”, assim como a memória. “Será que há pessoas que, pela sua posição, por estarem à frente do tempo que têm de viver, não têm interesse em ficar na memória?”, questiona Fran.

Com uma co-produção diversa, o encenador finaliza a conversa assim como o espetáculo: que esta homenagem, que destaca ser, perdure  entre Galiza e Portugal; entre o Centro Dramático Galego, o Teatro do Noroeste e os teatros nacionais; entre Manuelas.

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